Coluna Chuva Fina: "Assim no chão como no céu" - Jornal Fato
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Coluna Chuva Fina: "Assim no chão como no céu"

Ainda sou menino e, obedecendo a alguém que me avisou, costumo pisar no rés-do-chão devagarinho.


- Foto: Reprodução/Web

"Como dizia Antonio Candido, a crônica está sempre muito perto da gente; fala da vida ao rés-do-chão", mencionou, em recente entrevista, o premiado escritor - e amigo - Marcelo Moutinho, que entende do riscado. Candido também entendia. Menos eu. Ainda sou menino e, obedecendo a alguém que me avisou, costumo pisar no rés-do-chão devagarinho. Contudo, peço agô aos mais velhos e, encafifado, ouso dar meu pitaco: se "a crônica está sempre muito perto da gente", não seria este gênero, afinal, a manifestação de Exu na literatura? Ora, mensageiro entre os orixás e os humanos, ele é quem está mais próximo de nós.

Gozado. Numa aula do meu primeiro ano de faculdade, a turma teve de responder o que é comunicação. Na minha vez, parafraseei, de bate-pronto, mestre Pastinha: "Comunicação é tudo o que a boca cospe". (E a moçada se escangalhou de rir com meu 's' chiado em 'cospe', "um carioquês adulterado pelas curvas do Itapemirim".) Curioso é que, à época, eu ainda não sabia que o conceito de Pastinha - "Capoeira é tudo o que a boca come" - equivale a uma das definições sobre Exu: "a boca que tudo come". Da mesma forma que, algumas encruzilhadas depois, vim a aprender que Exu é, também, o orixá da? comunicação. E da crônica, pelo visto.

 

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Rezar criança arteira com espinhela caída, mau-olhado ou quebranto. Engenhar arranha-céus de cidades medianas em ascensão econômica (com franca vocação à cafonice, eis o detalhe no qual, acredita-se, mora o diabo). Calcular todas as apostas do jogo das catorze horas, só de cabeça, e entregar o talão fechado, sem nenhum erro na soma, à banca de bicho - que o diga meu vô Dezinho. Criar músicas que, uma vez lançadas, serão sucesso de crítica e de público (e uma dessas canções, composta em tom maior de saudade, há de levar às lágrimas, logo à primeira audição, aquele garoto de trinta e poucos anos que, órfão de mãe, pensava-se desconhecedor das conjugações do verbo amar). Tudo sabedoria. Tal como andar nas ruas. Mas, neste caso, há de se ressaltar: quanto mais vazia estiver uma rua, mais sabedoria nela haverá.

 

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Noites atrás, algo inédito me ocorreu: fui acordado por um aroma. Não, não foi o Jiló, nosso fiel felino (suas patinhas não estavam amarelas). Tampouco foi arroz queimado na caçarola, esse tradicionalíssimo patrimônio da distração doméstica. Quem nunca esqueceu uma panela acesa no fogão, aliás, que atire o primeiro isqueiro. Estou à beira dos meus 4.0 e somente agora fui despertado, pela primeira vez, pelo cheeeeiro de chão molhado. "Ih!", exclamei ao Jiló, tão logo acordei e observei, entre incrédulo, abobalhado - nada de anormal, coração - e feliz, a chuva fina a cair do céu, feito lágrimas a descerem dos olhos da menina da nega velha Izabel.

 

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Céu nublado me sugere silêncio. E no entanto, ó, aqui estou: falador-contemplador da quietude a quem desobedeço. Certo, não pretendo divagar - devagar - por entre o remanso dessa cinzentude. Igual à gaivota daquela fotografia (e há quem afirme que não seja gaivota), a sobrevoar o horizonte-clichê da praia deserta, num domingo plúmbeo, sob o qual, de repente, o voto de silêncio ali prometido fora quebrado pelas ondas a baterem na pedra. Não tenho muito a dizer, isso é verdade. Ou tenho? Perdão, céu.

 

 

Por Felipe Bezerra 
Jornalista

Felipe Bezerra Jornalista

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