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O silêncio tem sido eterno companheiro nos últimos muitos dias


O silêncio tem sido eterno companheiro nos últimos muitos dias. Não sabe nem precisar quantos. Eternas companheiras também linhas e agulhas que se unem em laçadas e nós habilidosamente trançados.

Tece tão automaticamente que nem precisa olhar para as mãos, que ganham autonomia e vida própria, tamanha a prática no artesanato que aprendeu, ainda menina, com a avó. Os pontos são na medida certa, nem apertados, nem frouxos, para garantir a perfeição das peças.

A avó certamente se orgulharia dela, que seguia a lição de estar atenta e desmanchar o trabalho caso um único ponto estivesse errado, mesmo se percebido apenas após muitas carreiras prontas (mentirinha, percebia, mas tentava se enganar e seguir em frente, mas não conseguia), e mesmo sob protesto, já que era um único defeito numa peça maravilhosa e quase concluída, que provavelmente ninguém mais veria.

Mas a professora exigente não abria mão. Tudo tinha que ser desmanchado e refeito. Ela obedecia, desconsolada, e puxava a linha, desfazendo ponto a ponto com a dolorida sensação de estar também se desconstruindo a cada pedaço desfeito.

Foi assim desde sempre, o que a tornou especialista no que poderia ser considerado uma arte e muito bem ser tombado como bem cultural imaterial no Livro de Registro dos Saberes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, já que o fruto do seu trabalho era resultado de saberes que passavam de mãe para filha em sua família há várias gerações.

Afinal, não queria ser modesta naquele momento de contemplação do que considerava uma arte. Muitas peças lindas, a tal ponto de não ter coragem de se desfazer de muitas delas. Sempre que começava, prometia que aquela seria vendida para o primeiro interessado que aparecesse em casa ou nas feiras das quais participava, mas sabia que não era confiável e que provavelmente mudaria de ideia. Cada ponto, afinal, estava entrelaçado à sua história.

Ouvindo silêncios e tecendo fios, começou a fazer analogias. Lamentava os nós da vida que não puderam ser desfeitos, ou por não tê-los percebido a tempo, ou por tê-los negligenciado, supondo que se desfariam por si só. Lamentava ter aceito migalhas, quando poderia ter exigido as primícias.

Pensa que devia ter sido com a própria história tão exigente quanto fora com suas agulhas e linhas. Mas agora o que resta é a convivência quase pacífica e relativamente harmônica com coisas que não podem ser mudadas.

Desfazer nós nesse ponto da vida, ao contrário do que pode parecer, não liberta, sufoca. E é tudo que ela não precisa. Por hora, vai tecer, incansável e ininterruptamente, fios de esperança e renovo, deliciosamente salpicados do dourado dos iluminados raios de sol.

 


Anete Lacerda Jornalista

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