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Marcas da alma

Menina miúda, delicada, cabelos cacheados, de pele clara e charmosas sardas no nariz


Menina miúda, delicada, cabelos cacheados, de pele clara e charmosas sardas no nariz, era sempre elogiada pelos traços que a faziam parecer uma boneca de porcelana, o que para ela não tinha a menor importância. Alegria em pessoinha, inquieta, curiosa, agitava todos os ambientes por onde passava.

Mas a garotinha perdera o brilho com a mudança e distanciamento dos amigos da breve vida, que moravam agora a milhares de quilômetros. Era nova demais e não se sentia obrigada a entender que o emprego do pai era em outro estado e que a estabilidade profissional e aumento salarial eram importantes para a família toda. Não tinha, nem queria ter, maturidade para isso.

As chances de uma vida acadêmica plena em boas universidades que a cidade grande oferecia para ela não fazia o menor sentido naquele momento em que a saudade regada a lágrimas abundantes fazia com que se sentisse murchar a cada gota vertida. A espevitada dera lugar à uma menina emburrada e mal-humorada.

Afundada em tristeza e solidão, percebeu um ressecamento estranho nos calcanhares. Não deu importância até que a sequidão começou a causar tanto mal estar quanto a falta dos amigos.  Tinha certeza de que o choro de saudades a desidratou, começando pelos pés. Odiava aquele problema, que achava o pior do mundo.

Dramática, já imaginava o corpo todo descamando. Assustava-se com a possibilidade de ficar parecida com as múmias que via nos filmes. Pedia aos pais que a levassem de volta à cidade da sua infância. Lá ficaria boa. Se ficasse ali morreria. Levada ao médico, descobriu-se que de fato havia um problema. A menina era alérgica à terra vermelha daquela cidade com baixíssima umidade no ar. Por isso as rachaduras nos calcanhares. O contato descalça era apenas no vasto quintal de casa, mas foi suficiente para causar todo o estrago que ela tanto odiava.

Inconformada, discordava do médico. Ele certamente não entendia nada de doenças provocadas pela falta de afetos.  Sabia que os pés só refletiam a secura da alma. Percebeu, a contragosto, que a vida se renova e que o que parecia permanente e insubstituível era efêmero. 

Falava com os amigos da infância, as velhas e inocentes dores foram substituídas por outras que a maturidade apresentou e buscou refúgio na leitura, sua nova grande paixão. Queria ter conhecido antes os seus novos companheiros, poetas que ensinaram que quem faz um poema salva um afogado. A alma estava finalmente saciada. Onde há poesia a sequidão vai embora.


Anete Lacerda Jornalista

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