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O engraxate

Dia 27 de abril: "Dia do Engraxate" - Minha homenagem


- Foto Reprodução Web

Alguns profissionais devem obedecer a certas regras para que possam exercer, sem nenhum problema, a sua atividade. Exemplificando: o motorista de táxi tem que respeitar a vez do colega; o lavador de carros não pode invadir o espaço reservado a outro lavador; o camelô deve se limitar a armar sua barraca no local que lhe foi reservado...

Não existe nada escrito, mas é o mesmo que houvesse, porque todo mundo respeita. E sabe o que acontece com quem não respeitar esses princípios? Sabe, sim!...

Também havia, entre nós, engraxates, uma convenção: quem chegar primeiro, escolhe o lugar pra colocar sua cadeira.

Já era a terceira vez que eu, distraidamente, fazia a mesma pergunta ao mesmo cidadão, que por ali passava: "Quer engraxar, moço?"

Ah! pra quê! Nem que me cortem o pescoço eu repito, aqui, a enxurrada de palavrões que ele despejou nos meus ouvidos. Por fim me ameaçou: "Se você me perguntar de novo, dou-lhe um sopapo". Do jeito que o sujeito ficou bravo, dava mesmo.

Naquele dia eu fui mais esperto do que o Bicalho, meu principal concorrente. Quando ele chegou, ali na esquina da rua Joaquim Vieira (era o melhor ponto do Guandu), eu já estava no segundo par. E, de quebra, já tinha levado um esporro de um desconhecido...

Havia uma tabela de preços. Se a gente cobrava, por exemplo, cinquenta centavos pelo par de sapatos, não podia cobrar menos de oitenta pra engraxar um par de botinas.

O sapato de duas cores - marrom e branco, por exemplo - dava um trabalhão danado. Olha só. Primeiro a gente cuidava do marrom: escova, tinta, graxa, flanela... Só depois é que se preocupava com o branco. Um vidrinho de alvaiade, um pincel bem fino, muito cuidado naquelas costuras... Que beleza! Eu quase saía no braço com o Bicalho, na disputa de um par de sapatos de duas cores. O preço? Ah! Duas ou três vezes mais que um calçado comum.

Também era muito disputado o sapato todo branco, mas dava pouco trabalho. Era só o alvaiade e nada mais. Nem escova, nem flanela...

Entre mim e o Bicalho havia uma outra competição à parte. Aos sábados, a gente visitava casa por casa daquele bairro à procura de sapatos pra engraxar. "Vamos ver quem consegue mais?" - olha um desafiando o outro! O recorde ficou mesmo com o Bicalho: ele conseguiu descolar doze pares, num único sábado.

Deus me livre se a gente se esquecesse de usar o protetor de meias. (Aquele pedaço de couro macio, em forma de "D", que era colocado entre a meia e a sapato, um em cada pé).

Ainda tenho uma esperança. Se algum dia eu me encontrar com o Bicalho, por essas estradas da vida (ô, Bicalho, cadê você?), lanço-lhe um desafio: traga sua caixa que eu levo a minha. Nosso encontro será naquela mesma esquina da rua Joaquim Vieira. Mudo de nome se eu não conseguir, nas casas daquele bairro, treze pares de sapatos pra engraxar.

 

(Do livro "Eu e meu umbigo" - adaptado)


Solimar Soares Escritor

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