O Resto é Silêncio - Jornal Fato
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O Resto é Silêncio


"Você é muito menino, ainda não sabe de certas coisas... Mas viver é morrer em prestações. Cada criança que nasce assina com a vida um contrato de compra e venda... e nós nunca sabemos o prazo certo do vencimento. [...] A criança assina o contrato e o vendedor, que é a Morte, passa a cobrar as prestações anualmente. Cada ano nós morremos um pouco. Quando vamos ficando velhos, as prestações já não são anuais, e sim semanais. Por fim o contrato se vence. E o pior de tudo é que nós continuamos sem saber o que compramos. Por acaso você sabe?" .

O título é de um livro de Érico Veríssimo, lançado em 1943. E o parágrafo anterior retrata o diálogo de dois personagens, após serem testemunhas oculares do suicídio de uma mulher numa sexta-feira santa.  A abordagem do autor destaca a fragilidade humana e a efemeridade do mundo.

As testemunhas involuntárias da tragédia possuem perfis e trajetórias diferentes, mas o que fica bem claro é que a morte une, mesmo que momentaneamente, impressiona e deixa marcas, independente da idade ou classe social. A suicida-personagem foi retratada após o próprio Veríssimo presenciar um suicídio. Ele associa vida e morte, através de enigmas e mistérios.

O autor analisa comportamentos e descreve a reação das pessoas antes e depois da tragédia e sugere que não nos conhecemos, que sabemos pouco ou quase nada uns dos outros, e que nos enxergamos de forma muito diversa. Eu diria, se é que nos enxergamos.

E esse olhar diverso, caso ainda exista, tem que ser mais atento e cuidadoso, num Estado em que 146 pessoas cometeram suicídio em 2016(uma morte a cada dois dias e meio), segundo dados da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa). É preciso buscar, respeitosamente, conhecer o outro e somar, de forma técnica, mas também pessoal e humanizada, o mais breve possível.

Não podemos continuar assistindo, impassíveis, ao suicídio de homens, mulheres e jovens por enforcamento (71%), armas de fogo(11,5%) e salto de lugares altos (4,8%), como aconteceu muito recentemente em Cachoeiro e tem acontecido em cidades vizinhas.

Seria o silêncio indiferente ou a verborragia desenfreada que impulsiona as pessoas a atos tão desesperados? As trajetórias diversas e histórias tão diferentes merecem estudos e ações que impeçam os recorrentes suicídios. É preciso ir além. Fazer mais do que chocar-se com despedidas tão precoces e inusitadas.

Não quero assinar, nem ver ninguém assinando, um contrato com a morte, embora saiba da brevidade da vida. Não quero estar impassível ante os suicídios que se sucedem, como se isso não fosse problema meu. É preciso unir esforços de multiprofissionais, com o intuito de ativar, ou reativar na cidade, serviços de apoio com pessoas que estejam dispostas a simplesmente ouvir.

Se o romance de Érico Veríssimo leva a reflexões, é bom lembrar que o ser humano tem valor e que suas histórias, tão similares, e ao mesmo tempo tão diversas, merecem um final feliz. É possível viver intensamente. Não precisa terminar com a incerteza do diálogo dos personagens de Veríssimo. "O pior de tudo é que a gente continua sem saber o que comprou... Por acaso você sabe?


Dayane Hemerly Repórter Jornal Fato

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