O verdadeiro artista - Jornal Fato
Artigos

O verdadeiro artista

Apareceram os programas televisivos das grandes redes nacionais com o velho tema: mostrando o quanto nos interessamos pela vida alheia e pela intimidade dos outros


- Foto Reprodução Web

No final da adolescência, início da faculdade, vivia o ano de 1977, na ocasião uma leitura me impressionou: o livro de George Orwell, 1984. Com a leitura e situação política do país, passei a temer o grande-irmão que controlaria a vida dos cidadãos. Vigiaria através dos olhos dos televisores todas as ações e manifestações, controlaria os casos de amores, desestimularia as paixões, o tamanho da prole e, assim, as futuras famílias. Um grande-irmão que puniria os que transgredissem as regras e desafiasse o poder central. Convivi, por um tempo, com o receio da história tornar-se realidade e os sentimentos humanos domados. Receio da perda da individualidade ou que a intimidade fosse invadida e explorada. Até então, a preservação da intimidade era uma virtude em alta.

Passados os anos, e 1984 não se concretizando, esqueci o livro ao conhecer o cinema americano e o seu voyeurismo. Tempos depois, e mantendo-se nos dias atuais, apareceram os programas televisivos das grandes redes nacionais com o velho tema: mostrando o quanto nos interessamos pela vida alheia e pela intimidade dos outros. Provando a realidade do livro, sendo o poder do grande-irmão transferido aos telespectadores pelo seu interesse no confinamento dos artistas e outros não tão conhecidos e famosos inicialmente. E pelas reações dos confinados, vemos que os comportamentos públicos e privados são semelhantes e começo a imaginar algumas casas nos meses chuvosos e de risco da dengue. Imaginei um confinamento em uma casa pública com o Governo Federal, Estadual e Municipal dividindo a responsabilidade de sua administração. As tarefas seriam divididas entre os participantes. Obrigação de preparar as refeições e lanches, assim como o cuidado da limpeza local. A casa deveria ter um quintal: certamente as latas e garrafas acumulando água da chuva e na piscina o cloro não renovado. A limpeza seria um desastre, o Aedes aegypt proliferaria numa velocidade nunca visto. O serviço, principalmente de limpeza, seria um jogo de empurra, um xis de problema, dormiriam o tempo inteiro. Por ser pública, logo cairia no esquecimento. Transformaria-se em foco endêmico do mosquito. Passaria o verão, as chuvas e os meses frios diminuiriam a quantidade de larvas e mosquitos, os ovos permaneceriam, mas não mais interessariam a mídia e assim sairiam o programa e a casa do ar. Os integrantes (Governo Federal, Estadual e Municipal) seriam esquecidos e tranquilamente passariam o trabalho para os novos inquilinos (políticos) eleitos na primavera. Os novos moradores chegariam cheios de ânimos e idéias, atacando os mosquitos para que pudessem dormir em paz. Os inseticidas (venenos) seriam utilizados, mas, com o tempo, as larvas e a mosquitada acostumar-se-iam e criariam resistência. Conclusão: muita gritaria e pouca eficácia. A educação (coleta de lixo, água e esgoto - saneamento básico e mudanças de hábitos) não seria incentivado, ensinado ou aprendido, pois não é valorizado nesta casa. Envolvido nesses pensamentos, desci os andares do prédio do consultório e me dirigi ao estacionamento. De repente, me deparo com um orelhão (telefone público, do fim do séc. XX), algo obsoleto em dias atuais, mas em perfeitas condições. Aproximei o telefone do ouvido e nada ouvi, estava mudo, nenhum som, estava esquecido, como uma casa ou obra pública pelo Brasil afora.  


Sergio Damião Médico e cronista

Comentários