Retrato - Jornal Fato
Artigos

Retrato


"Eu não tinha este rosto de hoje". Em que parte do caminho o rumo, a direção e as muitas certezas, que pareciam inabaláveis, foram perdidas? Quando exatamente escorreram entre os dedos os sonhos intensamente sonhados, mas pouco vividos? Em que tempo foram desleixadamente embalados e guardados no cantinho de entulhos e coisas desprezíveis, como se desimportantes fossem?

Em que momento o brilho do olhar e a inocente convicção de que tudo era perfeito se transformou em coisas incertas e imprevisíveis? A melhor resposta é a racional ou a emocional? No mais íntimo, profundo e belo da alma e do coração a clareza, firmeza e o acalento de que a emoção vale muito mais a pena do que a razão.

Acreditar que a racionalidade excessiva não é boa companheira parece certo. O equilíbrio a princípio anestesia, mas é fugaz e acentua a dor, afasta a magia, desestimula o desejo profundo de que tudo se conserte, por si, sem interferências, calmamente e sem tristezas.

"Assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo". Calma e calmaria. Daquela que cessa os maus ventos e permite, mesmo que por alguns minutos, ou quem sabe por dias inteiros, ficar à mercê da brisa gostosa que inspira novos sonhos e desperta velhos planos.

Aqueles antigos, regados por novas gotas de esperança, que insistem em trazer flores, com todas as suas cores e aromas inesquecíveis, mesmo que as pessoas não sejam as mesmas, que as forças tenham se exaurido, mesmo diante do desconforto e da dor. O que não causa surpresas porque todos mudam, o tempo todo. A vida é de fato uma roda viva, uma roda gigante por vezes desgovernada.

Mas o que não se deve perder é a essência, tão cara e insubstituível. Substituída, seja lá pelo que for, certamente deixaria sequelas da falta de identidade.  De não se reconhecer no espelho.  Quem sou eu? Onde estou? Para onde quero ir? "Eu não tinha estas mãos sem forças, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha esse coração que nem se mostra".

Interessante ver a passagem do tempo e perceber que o que temos para hoje é um coração que nem se mostra, mãos sem forças, pernas sem vigor. E percebemos, cedo ou tarde, que o tempo é implacável, embora democrático, e causa estragos indistintamente. A diferença é que há quem possa, mesmo que temporariamente, enganar as marcas do tempo. Mas jamais conseguirá apagar as marcas da alma. Essas são realmente eternas.

"Eu não dei por esta mudança, Tão simples, tão certa, tão fácil: - Em que espelho ficou perdida a minha face?" Ser impulsionada pelo calor da emoção ou ver derretidas todas as esperanças pelo excesso de racionalidade? Tempos de indagações inquietantes, propícias à presença dos amigos mais chegados que irmãos, que pensem diferente, tenham ideologias diversas, quase rompam por seus times favoritos, desejem rumos políticos diversos para o país, mas que aprenderam a se respeitar nas pluralidades vitais e necessárias.

Com a palavra Cecília Meireles. "Eu não tinha este rosto de hoje, Assim calmo, assim triste, assim magro, Nem estes olhos tão vazios, Nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força,

Tão paradas e frias e mortas; Eu não tinha este coração Que nem se mostra.  Eu não dei por esta mudança, Tão simples, tão certa, tão fácil: - Em que espelho ficou perdida a minha face?


Dayane Hemerly Repórter Jornal Fato

Comentários