A flor e o espinho - Jornal Fato
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A flor e o espinho


A primeira vez que a vi assoviava uma canção à beira da rua, enquanto lavava a calçada com um filete de água na mangueira e vassoura à mão. Era uma canção conhecida, das que meu pai ouvia nos finais de semana, quando eu era criança. Dizia que era para aliviar o coração. Imagine que a música falava de dor... mas a letra era o que menos importava para aquele que passou a vida acumulando intensidades.

 

"Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor...", dizia a canção que ela murmurava anonimamente, com olhos semicerrados e repletos de mistérios. Do outro lado da rua observo a mulher de baixa estatura e quadris largos, descalça e lenço branco na cabeça e que, desde cedo, aparentava muita disposição para o trabalho. 

 

Embalada pela canção, ela parece não ver passos apressados ao redor, tampouco ouvir buzinas dos veículos e ruídos do cotidiano. "Hoje pra você eu sou espinho e espinho não machuca a flor...", repetia por diversas vezes entre assovios e murmúrios. Um sorriso tímido escapava-lhe no canto da boca sempre que percebia alguma plateia.

 

Ela estaria infeliz? Como vou saber, se era justamente quando estava contente, que meu pai ouvia músicas tristes e me chamava num canto e dizia: "venha cá, para ouvir essa música linda!" À época, eu só conseguia sentir amargura naqueles versos, embora entendesse que parte do encantamento também vinha da melodia e dos arranjos musicais. 

 

Estou cá do outro lado vendo o bailar da água, ora na calçada de cimento, ora aos pés da mulher que cantarolava uma canção de Nelson Cavaquinho às sete horas da manhã. Resignada no ofício de servir, dava boas vindas ao sol, às flores e espinhos da vida - quem sabe -, na esperança de que a canção aliviasse um coração ferido ou alma desavisada.

 

Era uma dessas mulheres de difícil decifração. Embora sussurrasse versos de uma quase lamentação, tinha um rosto de feliz serenidade. Os quadris grandes davam-lhe um remelexo, uma cadência no caminhar ou um arremedo de samba miudinho, de alegria controlada.

 

Terminado o serviço, junta mangueira e vassoura e sobe as escadas cantando: "Eu na sua vida já fui uma flor, hoje sou espinho em seu amor". E o dia seguiu no seu mais profundo e insondável arrebatamento. 

 


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