Ano Novo, Vida Nova - Jornal Fato
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Ano Novo, Vida Nova


Entrou no carro, estacionado na garagem do prédio onde trabalhava; o horizonte avermelhado prenunciava o anoitecer. Como era verão, isso significava algo em torno de sete e meia, oito horas da noite. O ar estava quente, abafado, o que deixava o suor pegajoso, grudando a camisa sobre a pele. Antes, tirara o paletó e afrouxara o nó da gravata; jogou a pasta no banco de trás, displicentemente. Último dia do ano, último dia de trabalho.

 

Deu a partida, acendeu os faróis e saiu devagar, como sempre fazia, descendo as rampas com cuidado, sem pressa. Começou então a dirigir meio que sem rumo, e quando deu por si estava na rodovia, em direção oposta ao pôr do sol. Guiou por cerca de três horas, os vidros abertos. O ar agora estava fresco, o vento trazia o cheiro de mato molhado para dentro do carro. Ele sorria, sozinho, despreocupadamente.

 

Uma hora mais tarde começou a sentir o cheiro de maresia; o litoral estava próximo agora. Logo viu as luzes da orla, denunciando a pequena colônia de pescadores. Aproximou-se, reduzindo a velocidade, e entrou na vila, agora movimentada com a presença de turistas para a virada do ano. Passou pela rua principal e seguiu em frente, tendo o mar à sua direita, ouvindo as ondas quebrando na areia.

 

Distanciou-se o suficiente apenas para ouvir o burburinho vindo de um barzinho próximo, o último na saída da vila pela estradinha que pegara. De onde estacionara podia ver suas luzes e escutar trechos de música que o vento lhe trazia: so this is Christmas, and what have you done, another year over, and a new one just began...

 

Saiu do carro e espreguiçou-se, esticando o corpo cansado da viagem. Olhou em volta, tinha por companhia apenas a restinga, a areia branca e a espuma da arrebentação, iluminadas pela lua crescente, já alta no céu. Caminhou um pouco em direção ao mar, os olhos fechados, sentindo a brisa fresca no rosto. Antes que a água lhe molhasse os sapatos, sentou-se na areia e os tirou, junto com as meias. Em seguida levantou-se, desabotoou e tirou a camisa e a gravata. Desafivelou o cinto e tirou as calças e a cueca. Amontoou as roupas, colocando os sapatos por cima para que não se espalhassem com o vento.

 

Começou novamente a caminhar em direção ao mar, passos vagarosos mas firmes, deixando que a água fria e salgada lhe molhasse os pés, depois as canelas e as pernas. As ondas quebravam quase sem força, marolas na verdade. Quando estava com água pela cintura tomou fôlego e mergulhou completamente, de cabeça, furando uma onda mais alta. Permaneceu o máximo que pôde debaixo d'água, até os pulmões o forçarem a subir à tona, à procura de fôlego. Mergulhou novamente, e uma vez mais, e outra vez, ficando a cada mergulho mais tempo submerso. Sentindo-se exausto, saiu da água, enfim.

 

E quando saiu, todo o cansaço do ano havia ficado para trás. Todas as cicatrizes do ano, todas as feridas estavam saradas. Toda a poeira e todo o suor acumulados estavam agora lavados. Ano novo, vida nova, criatura nova. 


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