Mar apaixonado - Jornal Fato
Colunistas

Mar apaixonado


Onde já se viu o mar apaixonado por uma menina? Quem já conseguiu dominar o amor? Por que é que o mar não se apaixona por uma lagoa? Porque a gente nunca sabe de quem vai gostar. (Ana e o mar, Teatro Mágico)

 

Quando ela põe os pés na água o mar lhe sorri, contava o pai para a menina antes de dormir. Mas, papai, o mar não tem boca! A pequena resmungava quase vencida pelo sono. Tem sim, dizia o pai convencido de sua história. O mar beijava a menina com ondas suaves e a protegia de todo o perigo, como um príncipe protege sua princesa - continuou o pai. A garotinha ri. Que história mais doida é essa? Um mar que espera uma menina todos os dias e a presenteia com seu azul infinito e a abraça com a força do vento? Que a observa catando conchinhas, fazendo castelos na areia e escrevendo seu nome perto das ondas só para ele desmanchar?

 

A menina - dizia a história - tinha cabelos negros até a cintura, olhos miúdos e pele de brancura angelical. Todos os dias ia ver o mar. Às vezes, pela manhã, bem cedinho, quando as nuvens estão preguiçosas e o vento sopra suave. Noutros, vinha ao cair da tarde, sempre sozinha, feliz. Nem sempre entrava na água, mas todas as vezes molhava os pés. Era um ritual. Uma oração. Para o mar ela contava seus segredos: o dia na escola, a festa na casa da amiga, a briga com a mãe. As ondas traziam barcos, redes e pescadores. Também traziam cardumes e algas bem próximos de seus pés. Ela se distraia e os pensamentos se dissipavam. Quando a menina se despedia a maré recuava. Hora de dormir, de sonhar com a volta dela.

 

Um dia os olhos dela estavam estranhos, longe, muito longe dali. O mar se agitou para chamar atenção. Também chamou o sol e a chuva, esperando que ela gritasse - como das outras vezes - casamento de viúva! Mas ela ficou em silêncio, com o olhar perdido na imensidão do mar. Até que se levantou e começou a desenhar um grande coração na areia. O mar se alegrou. Quem sabe ela não notara seu amor? Enfim, daria a ela todos os tesouros escondidos no fundo do oceano! Seriam dela as maravilhas que reinam nas águas mais puras do universo...

 

Enquanto desenhava o coração, a menina soluçava. Por que as lágrimas? O mar não entendia. Aquele dia lhe entregara as mais lindas conchas, de cores, tamanhos e formas sem igual. A brisa soprava suave sob seus cabelos e balançava com cuidado seu vestido. Crianças brincavam felizes na areia molhada. Surfistas enamoravam o mar naquela manhã, partilhavam sons, paisagens e sensações. O cenário era de amor, mas a menina escondia uma dor que ainda não tinha nome.

 

Neste momento, o pai que contava a história, nota os olhinhos curiosos da filha que, sentada na cama, aguardava que lhe contasse o final feliz entre o mar e a menina. Afinal, quem poderia separá-los se eram iguais? Livres, amigos, cúmplices. E o pai, sem ter como explicar que os personagens eram muito diferentes, disse que chegara a hora de dormir e que na noite seguinte revelaria o desfecho da história. Teria que contar que paixões são inexplicáveis e a gente nunca sabe que direções elas vão tomar. Mas, ainda assim, o mar continuaria sorrindo apaixonado toda vez que a menina retornasse querendo contar seus segredos.


Comentários