Meias confissões  - Jornal Fato
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Meias confissões 


A sala era arejada, porém pequena demais para aquela mente fóbica. Havia um ano que se encontravam sempre na última semana do mês e a trama continuava a mesma: o ser oprimido pela voz familiar com quem mantinha contatos diários, que lhe ditava os pensamentos do dia e as decisões a tomar. A ordem que chegava a qualquer hora, com frases nem sempre inteiras, acabadas, na forma de sopro ou de grito.

 

Numa ocasião quase revelou ao terapeuta de quem se tratava a voz que lhe intimidava. Tudo porque no dia anterior travaram uma grande discussão. Aquele a quem rendia todas as obediências disse que iria embora. Um copo quebrado no chão da sala desencadeou uma luta que atravessou a noite, entre palavras ofensivas, doses de uísque e acusações de abandono. Quando chegaram à exaustão dormiram abraçados, mesmo feridos e terminados.

 

Queria contar por que não podia desfazer-se da dor daquele amor. As sessões lhe ajudaram a entender a falta, mas ainda era cedo para mudar de vida. Melhor o tormento do que o nada. Não se recusa companhia quando a noite custa a passar e os bares estão fechados. Cinquenta minutos durava aquela conversa mensal. Tempo suficiente para revelar que até àquele momento ainda não havia sido honesto com aquele que lhe ajudava a entender a si mesmo.

 

A verdade tornara-se inadiável. Sabia que era hora de exorcizar o pavor da lucidez e que os sinais já lhe escapavam à consciência. Não faria apenas por si, mas pelo amigo que embora remunerado para ouvir suas mentiras sinceras, esperava pacientemente pela evolução da conversa. Estavam vivendo como um casal cuja traição de um é percebida pelo outro, mas por acordo buscam a paz na conivência.Descrição: https://ci6.googleusercontent.com/proxy/RnNZfQn2o2xpggJQqefCOervMbPIci5mujDPJnvl43kv6Rtxjyh5gHN_JKVzeU-aaGz3pePFgxfoAAtZJZNx8mveVTc-11j98EfuAJVcumUenA=s0-d-e1-ft#https://ssl.gstatic.com/ui/v1/icons/mail/images/cleardot.gif

 

Não queria ser descoberto, mas ainda assim esvaziou-se naquele pequeno, mas aconchegante consultório. Confessou-lhe parte das feridas e as sabotagens. E como não era dado a impulsividades, deixou que o personagem se apresentasse devagar, sem pressa. Da mesma forma que se despediam dia após dia, com liberdade e confiança, como devia sempre ser.

 

Depois de um ano, a vontade de agarrar-se a sentimentos dolorosos estava desfeita. Restava-lhe agora viver em paz com o que sobrara daquele papel de vítima, fruto de sua imaginação e da falta de coragem para um amor de verdade.

 


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