O fim do poeta - Jornal Fato
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O fim do poeta


Lembra do poeta? Aposto que sim. Descrevi com tanta paixão essa fase da minha vida que você deve ter gravado na mente tanto quanto ficou gravado no meu corpo esse soneto feito de dois corpos que se completavam em perfeita harmonia.

 

Eu não tinha motivos para duvidar da adoração dele por mim, até que outras musas surgiram em seus escritos. Ele me disse que os escritores não escrevem apenas sobre a própria vida, que precisam de outras histórias, que usam a imaginação e que é a criatividade que move a literatura. Disse, inclusive, que se escrevesse apenas sobre ele seria tudo um grande marasmo. Que nada! Nossa vida era tudo, menos um marasmo. E poderia render textos para uma, duas ou três reencarnações. Mas ele, teimoso, arrumou casos que nunca ouvi falar. Usou mulheres baixas, negras, musculosas, equilibradas, velhas e jovens em suas poesias que, obviamente, não falavam de mim. Não sou nada disso. Não sou nenhuma delas. De onde ele tirou coisas tipo "pele bronzeada", se eu nem tomo sol? De onde veio "um mar sem ondas", se eu sou um tsunami? "Inspirações da vida, meu bem", ele me disse. Você sabe como sou. Não caí nessa de jeito nenhum.

 

E em minha busca desenfreada por qualquer coisa que te tire de mim, confesso que me apaixonei por ele. "Meu poeta", eu dizia com o coração disparado. Até determinado momento, ele só tinha o meu melhor. Quando deixei de ser assunto único de tudo que ele escrevia, ele descobriu a Ana que estava adormecida.

 

Apaguei do computador dele tudo que não foi inspirado em mim e quebrei o teclado para que não escrevesse mais. "Encerra a carreira e vem ser só meu", ordenei chorando, quase implorando. Ele olhou para mim como quem tem pena, segurou minha mão e pediu que eu fosse embora, assustado com meu ciúme. O assunto podia ter sido encerrado ali. Mas não.

 

Eu fingi que fui embora e fiquei escondida esperando ele sair. Ainda tinha a chave da casa e mil ideias de vingança, porque me mandar sair foi precipitado, cruel e desumano. Preferir a tranquilidade de escrever qualquer coisa em paz não foi justo comigo. Ele tinha que ter me escolhido, e ter me considerado melhor do que todo o resto.

 

Juntei todos os livros dele. Todos. Aproveitei e acrescentei jornais, revistas, recortes e rascunhos. Um pouco de álcool e um fósforo riscado. Parti feliz, com a certeza de ter feito a coisa certa.


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