Realidade e ficção - Jornal Fato
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Realidade e ficção


 

Nos corredores do hospital de psiquiatria, vivenciamos a pequena distância entre a razão e a insanidade, o poder da imaginação humana e sua capacidade de devanear. Os relatos nos confundem. Ora nos alegram; ora nos entristecem. Algumas vezes nos amedrontam. Deixam-nos inseguros. Entre as palavras e as ações são instantes. Segundos, como um raio. Mesmo que imaginados ou arquitetados em longo tempo. O tempo, na mente humana, se faz instantâneo, proveniente do misterioso tempo passado. Entender esses mistérios é um enorme desafio. Uma boa maneira para decifrar os labirintos da mente é a literatura (contos e romances). Neles se apresentam conflitos amorosos, crimes passionais, obsessão pelo poder, ciúmes doentios, invejas, ódios, intolerâncias... As coisas próprias dos seres humanos. Os escritores criam seus personagens, traçam seu perfil psicológico, desnudam fraquezas humanas, descrevem mazelas sociais e mentais.

 

Às vezes, o próprio autor é o personagem. No diário de Maura Lopes Cançado, ela vai relatando sua vida em manicômio. Nascida em família mineira, rica, na década de 30 do século passado. Tão rica que, aos vinte anos de idade, possui seu próprio avião. Aprende a pilotar. Com a morte do pai, perde a fortuna e começa a apresentar sinais de transtorno mental. Após trabalho no Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, interna-se em clínica psiquiátrica. Em seu diário - "Hospício é Deus", conta os maus tratos no hospital e suas fantasias. O que mais me intriga no texto da Maura, tanto no diário como em seus contos - "O sofredor do ver", escritos no fim da década de 60, é a semelhança com a escrita da Clarice Lispector. Maura é contundente, avassaladora, acusadora e sofredora. Clarice é mística, amorosa e poética, impertinente com as coisas sociais. Mas assemelham-se na grandiosidade da escrita, na beleza da inteligência e inquietude. Não se contentaram com a superficialidade. De repente, vemos, nas duas, o limiar da loucura. Maura se deixa levar pela escuridão da mente, pelos seus labirintos. Não consegue o convívio social.  Clarice, apesar de reclusa, mantém-se por um fio, em uma sociedade que a admira, mas não a entende. Ler Maura e Clarice é buscar a alma humana, nossa humanidade, as razões do agir e pensar.

 

Porém, somos tão diferentes, apesar das semelhanças. Por isso, tão difícil estratificar a mente humana. Aproximamos-nos nas pulsões, nos desejos, carências, medos, necessidades físicas... As fontes dos nossos conflitos. Dia desses, ao conversar com um dos presentes na enfermaria da clínica psiquiátrica, um dia depois dele tentar o suicídio, com os pulsos cortados e suturados, queixava-se da dor local e reclamava do atraso no curativo, nada mencionava sobre a autoagressão do dia anterior, solicitava alta hospitalar e jurava que naquele momento, mais do que nunca, desejava viver, aproveitando tudo de bom, e belo, que nela existe. No quarto ao lado, um rapaz de porte atlético, conversava com vizinho de enfermaria. Falavam coisas amenas. Nenhum sentimento de culpa pela agressão e morte de parente próximo. Horas depois, na leitura do diário da Maura, encontrava-me na página que conta como sufocou uma paciente no leito de quarto do manicômio. Crime acontecido um pouco antes dela se perder na escuridão da mente.

 

Sergio Damião Santana Moraes


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