Deserto - Jornal Fato
Artigos

Deserto

As janelas abertas deixavam entrar a brisa gostosa, e o barulho das ondas do mar embalavam sonos e sonhos


As janelas abertas deixavam entrar a brisa gostosa, e o barulho das ondas do mar embalavam sonos e sonhos. A casa de telha colonial, de frente para o mar, adequadamente decorada de temas marinhos, era perfeita. As escadas de madeira davam ao local um ar acolhedor.  

E aquele aconchego todo, aliado às melhores sensações que a contemplação do infinito azul do mar, ou a lua a iluminá-lo, já garantiam um sono perfeito. Sem preocupações.  Por hora o mundo, embora apenas o meu pequeno mundo, era irretocável.

Por opção, desconectada das redes sociais e das notícias que anunciam, a cada dia, o apocalipse. Não era, por hora, momento para pensar que o final dos tempos está próximo, como anunciam os cristãos. As desgraças ficariam do lado de fora, longe daquele ambiente.

Tudo o que visualizava eram as inesquecíveis brincadeiras de criança, o pique-esconde, o chicotinho queimado, as queimadas e o futebol com os primos e irmãos. Eram muitas gargalhadas que denunciam um tempo de simplicidade imensamente feliz. Tendo como pano de fundo aquela lua imensa a iluminar o mar, que por ora era todo meu.

Também recordava da escola pública invejada por todos, que cheirava a nova, repleta de equipamentos nos laboratórios, e onde tive professoras inesquecíveis, Graça Moreira e D. Raquel entre elas. Foram daquelas que nos ensinaram a dar mais um passo, a seguir em frente, a acreditar que é possível, a se atrever a alçar voos.

E aí eu cresci com essa mania de ter fé na vida. De sonhar que todos merecem oportunidades iguais, que não deveria haver racismo ou discriminação e que os cristãos, espalhados mundo afora, seriam imagem de Cristo e demonstrariam o seu amor pelos excluídos.

A brisa agora é um pouco mais gelada, mas os sonhos ainda trazem memórias que me fizeram quem sou, com minhas escolhas muitas vezes incompreendidas, por quem segue as lições que dizem primeiro eu, depois eu e finalmente eu.  Por opção, acho que desde sempre, resolvi pensar coletivamente. Só é bom para mim se for bom para todos. Bem simples, né, embora seja taxada de idiota frequentemente. Os mais corajosos fazem isso cara a cara. Ou outros me desprezam em silêncio mesmo.

No sono gostoso, ainda embalado pelas ondas e brisa, lembro-me daqueles que podem ter sido os melhores anos de minha vida até aqui.  As minhas filhas e os meus sobrinhos e sobrinhas pequenos, transformando na maior festa do mundo qualquer encontro. Amor incondicional que permanece, embora as responsabilidades e a distância não permita mais os encontros sagrados e regulares.

Abro o olho e contemplo um nascer do sol lindo, ainda bem no comecinho. Aquela visão perfeita será capaz de acalentar esperanças e novos sonhos por alguns dias. Esse, pelo menos, é o desejo do meu coração. Quando saí do meu refúgio, senti um nó apertado na garganta e um sufocamento no peito.

O clima pesado, as trocas de olhares de rancor me assustaram. As palavras ásperas ferem mais do que navalha. Correndo, voltei para casa. Não sei por quanto tempo, mas quero meu mundo perfeito, em que cabem apenas o respeito, as boas lembranças, o mar e a brisa. Melhor o isolamento que mantém a sanidade que a convivência que devasta a esperança. Tenho muitos sonhos coletivos. Um deles, o Brasil com os mesmos direitos e deveres para todos os brasileiros.


Anete Lacerda Jornalista

Comentários