Rabiscos, afetos e muitos senões - Jornal Fato
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Rabiscos, afetos e muitos senões

Não. Não era um diário. Mariana se recusava a classificar assim rabiscos da vida toda


Foto ilustrativa

Não. Não era um diário. Mariana se recusava a classificar assim rabiscos da vida toda.  Não era uma romântica que se permitia uma bobagem dessas. Eram apenas cadernos de anotações em que registrara fatos importantes, desimportantes, necessários e desnecessários. Hoje alguns pareciam perfeitamente dispensáveis. Não sabia mesmo porque aqueles momentos estavam ali. E nem porque volta e meia lia novamente páginas amareladas, algumas manchadas pelo tempo e pelas lágrimas.

Cadernos que mantivera devidamente escondidos. Dos pais, dos amigos, dos namorados, do marido, dos filhos. Em alguns momentos, até de si mesma. Se alguns fatos despertavam saudades, outros deveriam ser apagados, não fossem escritos a caneta. Tinha a opção de arrancar algumas páginas, mas isso não mutilaria também parte de sua história?

Realmente não sabia, e sua vida continuava ali, exposta em preto e branco, sem nenhuma graça ou glamour. Ou com muitas cores, em momentos que corações e beijos marcavam as bordas das folhas e mostravam que o dia fora repleto de emoções. Alguns fatos despertavam saudade. Outros, vexame e dor, mesmo passados tantos anos.

A princípio, escrevia no seu quarto de adolescente cheio de posteres dos seus ídolos, todos com corações caprichosamente desenhados com canetas coloridas. Quanto desperdício de tempo, pensava agora, marcada pelos desencantos da vida. Definitivamente ela não era romântica. Não aceitava esse rótulo.

Bobagem essa mania das pessoas rotularem a tudo e a todos. Ela apenas guardava junto de si seus afetos e memórias, e escrevia. Escrevia e sonhava. Escrevia e chorava. Escrevia e sorria. Escrevia e tentava viver. Um minuto de cada vez, que a vida é incerta.

Ela negaria até a morte, mas continuava escrevendo. Afinal, não tinha diários. Não era romântica. Não acreditava em contos de fadas. Sua vida era desimportante. Mas eram tantos volumes de não-diário que tivera que mandar encadernar, com títulos de seus autores prediletos, para disfarçá-los no meio da estante.

Não corria riscos, já que era a única em casa que apreciava um bom livro. Sua família não imaginava que a leitura daqueles momentos daria pistas importantes da mulher de muitas fases e poucas explicações. E para falar a verdade, Mariana nem sabia se alguém queria enxergá-la por inteiro. Nem ela queria desnudar-se. Era uma incógnita para si, imagina para os outros.

E revelar-se ou deixar-se conhecer intimamente romperia um ciclo. Arruinaria o propósito da vida toda de esconder-se atrás das palavras. E era boa nisso. Fizera isso tantas vezes que a prática levara à perfeição. Mas não. Não escrevia diários, essa bobagem romântica e piegas. Eram apenas umas mal traçadas linhas. Nada além disso. E viveu ansiosa para sempre.


Anete Lacerda Jornalista

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