Violência Simbólica - Jornal Fato
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Violência Simbólica

A expectativa é grande e remete à adolescência, tamanha a emoção pela coragem de recomeçar de um novo ponto de partida, a esta altura da vida...


Caso 1: O coração acelerado diante da possibilidade de um novo emprego provoca um leve rubor no rosto. Sinto-o queimar, apesar do ar condicionado em baixa temperatura, agradável para uma perfeita e iluminada manhã de outono.

A expectativa é grande e remete à adolescência, tamanha a emoção pela coragem de recomeçar de um novo ponto de partida, a esta altura da vida. Estava trabalhando e podia me dar ao luxo da recusa, se fosse o caso. Mas a emoção de ter sido lembrada numa empresa de referência era muito agradável.

Encarei o recrutador com o coração aos pulos, devidamente ocultos por uma segurança exercitada à exaustão, após muitos anos de exercício da profissão. Sempre estive absolutamente segura em relação ao meu desempenho profissional, sem falsa modéstia. Aprendi com os meus erros. E ainda aprendo, que na vida sou eterna aprendiz.

E dizer que encarei o recrutador não é exatamente a verdade. Antes disso, fui encarada por ele, num olhar de decepção mal disfarçada, acompanhada por uma pergunta: ah, você que é Anete Lacerda? Fiz de conta que não percebi o desencanto exposto em gestos e palavras, e a conversa, agradável e produtiva após o primeiro impacto, fluiu naturalmente.

Caso 2: Chego à manicure para "fazer" as unhas. De repente começa uma conversa sobre o fato de eu ter emagrecido muito, e que era muito mais bonita quando estava gorda. Que estou muito acabada, que a perda de peso não foi uma coisa boa para a minha vida, e blá, blá, blá. Em comum com essas duas situações, apenas eu antes e depois de emagrecer cerca de 70 kg, e a violência simbólica. Que chega sem pedir licença e dá opiniões que você nunca pediu.

Então vamos aos fatos: o olhar decepcionado na entrevista de emprego se deu provavelmente porque ninguém admite ou imagina uma pessoa gorda ou fora dos padrões estéticos, (mesmo estando relativamente bem arrumada e de unhas feitas e cabelos cuidadosamente escovados) sendo competente. Inclusive diante de boas referências, parecia haver contradição entre o currículo e a minha pessoa. Foi o que senti naqueles segundos iniciais.

Para quem já recebeu centenas de olhares de censura e descaso ao longo da vida, apenas pelo fato de ser gorda, não foi tão difícil assim. Então vamos, sem mais delongas, ao ponto. A naturalização da violência simbólica é impressionante. É o que acontece na dominação masculina sobre a mulher, fato gerador do feminicídio sem controle país afora.

O termo não é uma invenção da minha cabeça. Foi estudada pelo sociólogo francês Pierre Bordieu, que a definia como uma violência cometida com a cumplicidade entre quem sofre e quem a pratica, sem que, frequentemente, os envolvidos tenham consciência do que estão sofrendo ou exercendo.

Podemos não ter noção de quando praticamos ou sofremos a violência simbólica, mas vai uma dica: quando você dá ou recebe opiniões que não foram pedidas, a chance de estar sofrendo ou cometendo esse tipo de violência é quase de 100%. E geralmente, vai por mim, sofremos mais do que praticamos. E para finalizar, fui contratada após a entrevista de emprego. E não. Ainda não mandei a pessoa do segundo caso para os quintos. Mas não vai faltar oportunidade.  


Anete Lacerda Jornalista

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