Há duas décadas, partia o último trem - Jornal Fato
Especial

Há duas décadas, partia o último trem

Historiador conta sobre história da ferrovia cachoeirense


Fotos: Arquivo pessoal/ Paulo Thiengo

 

Rafaela Thompson

 

Há exatos 20 anos, em 28 de agosto de 1996, partia o último trem em Cachoeiro de Itapemirim. Ao longo dos anos, os trilhos foram sendo aterrados ou retirados e a memória das linhas férreas, esquecida.

 

De acordo com o pesquisador e historiador, Paulo Thiengo, que guarda  a memória da ferrovia da cidade, não há investimentos para preservar a história dos trens que passavam pela cidade. Ele lamenta que muitos jovens não chegaram a ver as locomotivas passando pela cidade, e que os trilhos tinham condições de serem mantidos, mas a prefeitura na época, segundo Thiengo, não fez nenhum esforço para preservar as linhas.

 

"Apesar da péssima geografia da cidade, os trilhos poderiam ser mantidos, substituindo um meio de transporte que garantiria o deslocamento seguro, barato e rápido de milhares de cachoeirenses por décadas, além de direcionar corretamente o crescimento da cidade. Hoje, s maioria dos investimentos da cidade fica próxima ao centro. E fica claro que os governos passados não fizeram nada pelas ferrovias", conta.

 

A reportagem tentou contato com a assessoria do presidente da Assembleia Legislativo, Theodorico Ferraço, prefeito quando os trilhos foram retirados, mas não obteve retorno. 

 

Acervo

 

Paulo guarda acervo de fotos e documentos da ferrovia há cerca de 30 anos. "Principalmente da Leopoldina, que é minha paixão. Tenho desde fotos da construção da ferrovia na serra, entre 1908 e 1910, que foram reproduzidas de negativos em placa de vidro, até o que sobrou do arquivo da Leopoldina Railway, que estava sendo queimado em Campos e de onde trouxe cerca de meia Kombi de material. Todo o resto foi perdido".

 

Thiengo conta que sua intenção era valorizar a cultura e memória da cidade, mas que ao longo dos anos percebeu o desinteresse do governo municipal. "A intenção original era termos em Cachoeiroum dos melhores museus do país, nesta área. Lutei por isso ao longo de anos. Por um momento, caí na real e percebi que é uma utopia e desisti de tudo".

 

 

Cachoeirenses falam sobre ferrovia

 

 

"Nunca concordei com a retirada dos trilhos. Por anos, o trem foi o principal meio de transporte, principalmente para as pessoas mais simples na época. Lembro-me com nostalgia de minha infância e juventude, quando viaja para o Rio de janeiro pela linha férrea. Lembro-me também dos acidentes, que volta e meia acontecia, principalmente com a molecada que pegava carona nos trens", contou Iracy de Mendonça, de 80 anos, aposentada.

 

Ela lembrou também do acidente de maior repercussão. "Um episódio que me marcou foi o acidente com (cantor) Roberto Carlos. Apesar dos acidentes, a realidade da cidade poderia ter sido diferente caso as ferrovias continuassem servindo à população".

 

"O trem, sem dúvidas, é um dos melhores meios de transporte já utilizados até hoje, em minha opinião. Em relação a custo/benefício é muito mais interessante que qualquer transporte rodoviário. Tendo o Brasil com possibilidade de expansão da malha ferroviária, seria extremamente interessante um investimento nesta modalidade de transporte, não só de passageiros, mas principalmente, de carga", disse o engenheiro de Petróleo e Gás, de 29 anos, Walter Vieira.

 

"Acho que se a ferrovia tivesse sido mantida traria muitas melhorias para Cachoeiro. Para cidades do interior, o maior impacto seria as inúmeras vagas de emprego geradas. Outro fator importante seria o turismo, que ganharia um 'algo a mais' com rotas feitas pela linha férrea. Além de tudo isso, sendo a nossa região uma grande produtora de minérios, a capacidade de carga e o baixo custo de trens auxiliaria muito a saída desse minério", complementou.

 

"Não tive a oportunidade de ver o trem na cidade, mas acredito que se ainda estivesse em funcionamento o trânsito seria melhor e a poluição também seria reduzida. Além de ser uma opção para o turismo", conta a estudante Keysi Monteiro, de 18 anos.

 

A história

 

 

Por Paulo Thiengo

 

A região sul do Espirito Santo era a mais desenvolvida e rica do Estado ao final do século XIX e início do século XX. Por conta disto, tornou-se viável a implantação de ferrovias para escoamento de suas riquezas, principalmente o café. Assim, em 1887 era inaugurada a Estrada de Ferro do Cachoeiro ao Alegre, de propriedade da Companhia de Navegação e Estrada de Ferro Espírito Santo e Caravellas. Passou a ser conhecida como "Estrada de Ferro Caravellas", cuja estação inicial situava-se onde hoje está o palácio Bernardino Monteiro, no Centro, atual sede da prefeitura.

 

Esta ferrovia, de 71 km de extensão, ligava Cachoeiro à localidade de Pombal, onde hoje é conhecido com distrito de Rive, em Alegre, com um ramal para Castelo, com início no distrito de Coutinho. Começava em Cachoeiro por que era ali o ponto onde o rio deixava de ser navegável.

 

O café transportado por tropas de animais até a estação de Castello, por exemplo, era despachado diretamente para o Rio de Janeiro: Era levado pela ferrovia até Cachoeiro, onde havia um ramal até o porto onde está, atualmente, a antiga sede do Centro Operário, defronte a Casa do Estudante. Lá, embarcado em pranchas ou barcos e levado pelo rio até o Porto de Barra de Itapemirim, o mais movimentado do Estado naquela época. Então, embarcado em grandes navios, era levado até o porto do Rio de Janeiro. Um complexo e eficiente sistema multimodal ainda na época do Império.

 

Vitória, nesta época, era uma cidade pequena e esvaziada economicamente. Até meados do séc. XX tinha metade dos habitantes de Cachoeiro, que chegou a responder por um terço da arrecadação do Estado. Com o objetivo de levar para seu porto o café produzido no Sul do Estado, de forma a arrecadar ali os impostos de exportação, foi projetada uma ferrovia até Cachoeiro - a Estrada de Ferro Sul do Espírito Santo - passando pela região serrana, servindo, com isto, também para atender os núcleos coloniais da imigração, implantados pouco antes.

 

Ao mesmo tempo, a Companhia Estrada de Ferro Carangola, que havia inaugurado o primeiro trecho, de Campos a Murundu em 10-08-1876, conseguiu autorização para prosseguimento de sua ferrovia a partir de Santo Eduardo, às margens do rio Itabapoana, na divisa com o ES, aonde chegara em 13/06/1879. Ali terminava o Ramal de Santo Eduardo, que partia de Murundu. Para isto, constituiu-se a Estrada de Ferro do Santo Eduardo ao Cachoeiro de Itapemirim, cuja concessão foi autorizada em 15-12-1888. Esta ferrovia tinha 93 km de extensão, terminando em Cachoeiro (daí o nome "KM 90" ao bairro localizado um pouco antes da estação - hoje "São Francisco de Assis"). Depois, em 1890, passou para o domínio da Companhia Estrada de Ferro Leopoldina, uma empresa brasileira, constituída em Além Paraíba em 1872. As obras pararam em 1895, em Mimoso do Sul. Tendo falido, foi constituída em Londres a empresa Leopoldina Railway, pelos credores ingleses, passando a operar no país a partir de 1898.

 

Por outro lado, o governo do Estado assumiu as obras de construção da Sul do ES, iniciada com capitais privados, inaugurando a estação de Jabaeté (hoje Viana) em 13-07-1895. Prosseguindo serra acima, foi inaugurada em 1-1-1900 a estação de Santa Izabel (depois Germânia, Domingos Martins e atualmente Vale da Estação). A estação de Marechal Floriano foi inaugurada em 13-05-1900 e as de Araguaya e Engenheiro Reeve em 15-03-1903. Com os trilhos parados junto ao rio Benevente, em Mathilde - a estação Engenheiro Reeve ficava ANTES da travessia do rio - as obras foram paralisadas, por falta de recursos do governo do ES. Em 1907, foi esta ferrovia vendida aos ingleses da Leopoldina Railway, que completou a ligação entre Cachoeiro e Mathilde (nova estação foi construída do outro lado do rio), quando também foi completada a ligação entre Nictheroy e Vitória (27-06-1910). A ligação com a cidade do Rio só seria efetuada em 1926, com a ligação entre Visconde de Itaboraí e Magé.

 

Um capítulo quase desconhecido de sua história é a mudança de traçado efetuada pela Leopoldina. A Sul do ES tinha deixado prontos cerca de 30 km de leito, sem trilhos, passando por Concórdia, Paraíso e Rodeio, em Vargem Alta, além de trechos existentes próximo a Ibitiruí, antigo "Engano", nome recebido justamente por conta desta mudança (A Leopoldina optou por outro traçado, passando por Vargem Alta, por questões meramente de custo). Todas as lendas criadas em torno disto são absolutamente inverídicas, como uma que fala de uma briga entre o engenheiro Reeve e um morador local por conta de uma banda de porco (Reeve era um empreiteiro, não o engenheiro chefe, e NÃO tinha poder para alterar o traçado). Outra, muito conhecida, diz que Mathilde, Guiomar e Virgínia - todos os nomes de estações - seriam filhas do coronel Carlos Gentil Homem e de que ele seria o responsável pela mudança no traçado! No entanto, todas estas localidades já existiam, e com estes nomes, 20 anos antes da ferrovia! Além disso, o coronel morava em Rodeio e mudou-se para Guiomar justamente por conta da mudança no traçado! Acabou sendo prejudicado por ela, portanto. No documentário que estou produzindo, sobre o trecho Cachoeiro/Vitória, todas estas questões serão abordadas e sustentadas com farta documentação. Embora tenha conseguido um bom material sobre a história desta ferrovia - incluindo fotos de sua construção - e tenha equipamentos de vídeo e veículo, tenho grande dificuldade em encontrar pessoas que queiram ajudar com os trabalhos.

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