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Assisti no início da pandemia o documentário "Em Nome de Deus", que conta a história do suposto médium João de Deus


Foto: Felipe Cardoso/ Metrópoles

Assisti no início da pandemia o documentário "Em Nome de Deus", que conta a história do suposto médium João de Deus, da sua infância até sua prisão por uma lista enorme de crimes sexuais, passando pela descoberta de um patrimônio gigantesco, acumulado durante seu tempo em Abadiânia, onde, além de ter conquistado um posto semelhante ao de um "super star", funcionava como uma espécie de xerife da cidade, controlando o comércio local, o transporte e o turismo. 

Trata-se de uma série densa, porém necessária. Na tarde em que acabei de assistir, sentei no chão e chorei por cerca de quarenta minutos. Ele, seu João, causou danos irreversíveis a centenas de mulheres. Mas não só isso emociona. A série nos traz uma reflexão muito séria sobre nossa própria história e das mulheres que nos cercam. Nos fazem considerar situações e trazem à tona sentimentos que o cérebro meio que colocou em uma caixinha lá no fundo de tudo e que voltam para te mostrar que elas não foram as únicas. Em algum momento da vida as mulheres da minha geração foram assediadas ou passaram por relacionamentos abusivos. Das passadas, nem se fala. E parece que pouco mudou nas que vieram depois. Uma mudança que requer urgência, mas que vem chegando tímida por medo e vergonha do caminho que precisa ser percorrido a partir do "não vou mais me submeter a isso". Muito foi feito, mas a labuta ainda é grande.

Talvez, se a primeira tivesse denunciado, não teríamos um número tão expressivo de mulheres abusadas por ele. Talvez. Nítido que ele foi acobertado por muitos e muitos anos pelas pessoas que estavam ao seu redor, pelos interesses econômicos da cidade, pela força da própria fortuna e pela presença de celebridades que, de boa-fé, realmente acreditavam não só na força espiritual, mas na força do caráter desse homem. Afinal, por que o dom de cura seria dado a alguém de natureza tão sórdida? Porque assim como há casos de abusos, há casos de cura, segundo testemunho de pessoas que passaram por Abadiânia. Então ele não ataca só o corpo, a moral e o psicológico das mulheres, mas também a fé de todos nós, essa fé do povo brasileiro que é ao mesmo tempo tão pura e tão sincrética. 

Essa semana a plataforma Netflix lançou documentário que trata o mesmo tema. Crime e Cura mostra fatos mais atuais do processo, troca de advogados, apreensões da polícia federal nos imóveis e novas vítimas. Mulheres que tiveram sua credibilidade colocada em cheque e outras que, apesar de terem denunciado tanto aos membros da casa onde João atuava quanto na delegacia, foram silenciadas pela injustiça e pelo descaso. 

Entre informações inéditas ou não, imagens e detalhes diferentes, a sensação de dor das duas obras é a mesma. Não é um entretenimento leve, mas algo que precisa ser visto, seja para entender como realmente é importante falarmos disso, seja para sabermos como precisamos ser rede de proteção umas das outras, seja para refletirmos o que realmente estamos fazendo com nossas meninas para que o grito de socorro seja dado antes que o mal maior seja feito. 

O João nem sempre é um famoso. Ele às vezes é o amigo, o vizinho, o chefe. O padrasto, o pai, o irmão, o marido. O líder religioso, o dono do comércio, o médico, o cara da farmácia. E não denunciar pode significar que ele pode não parar. Fale, grite, denuncie, seja rede de apoio, abrace, acredite. E perdoem-me pelas vezes em que foi em mim que faltou coragem. Que nunca mais me falte voz, e que eu nunca deixe de ser força e apoio para quem escolher falar.

 


Paula Garruth Colunista

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