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Que não seja escravidão

Não que eu seja contra cirurgias plásticas e intervenções para melhorar aqui e ali


Não que eu seja contra cirurgias plásticas e intervenções para melhorar aqui e ali. Nada disso. Sou contra que essas coisas sejam feitas para que se siga um padrão imposto. Como eu me sinto comigo é o que importa. A busca insana pela beleza e pela juventude em prol de um conceito de uma sociedade que não anda lá muito saudável é o que realmente deve sofrer a intervenção de um bisturi afiado. Mesmo porque a enorme lista do que a medicina e a estética nos permitem mudar é um lugar onde nossa história nunca vai estar.

Na crônica "A mulher e seu passado", de Rubem Braga, diz sobre isso. De que somos hoje somos o resultado do que vivemos ontem: "Bendito seja todo o teu passado, porque ele te fez como tu és e te trouxeram até mim". Desmanchar, reformar, cortar ou esticar o que o tempo inevitavelmente tira do formato inicial pode disfarçar quantos anos você tem, mas não apaga quanto tempo já viveu. Não há preenchimento que complete os vazios e nem lipoaspiração que retire os excessos de tudo o que foi e que ainda é a nossa história. Faça o que te faz feliz. Mas não se perca buscando um tempo que não volta.

Por trás de cada prótese mamária existe a história de uma mulher que engravidou, amamentou, sofreu com as rachaduras e com dor. Ou de uma mulher que adoeceu e precisou ser mutilada. Ou de uma mulher que ganhou ou que perdeu muito peso durante a vida, vítima de ansiedade ou depressão ou bullying ou dietas mirabolantes que a convenceram fazer. Ou de uma mulher não satisfeita com o corpo que quis mudar, ou foi convencida por alguém cujo amor era tão nada que dependia de uma cirurgia para sobreviver.

Por trás de cada ruga preenchida ou esticada existem as histórias que as fizeram estar ali. Como o dia em que passou a noite chorando pelo amor que acabou, pela morte de alguém ou por pura solidão, ou pelas vezes em que perdeu o fôlego e que sua barriga doeu de tanto rir por uma piada, um filme, um beijo ou por quase nada, só por felicidade mesmo. Ou então pela emoção arrebatadora do nascimento de um filho, do dia do seu casamento, da aprovação no vestibular, da compra do primeiro carro, da viagem dos sonhos, da realização de uma vontade imensa.

Por trás de uma lipo há momentos inesquecíveis ao redor de uma mesa farta. E dos dentes clareados há vinho, café, cigarro, chocolate e muita coisa para contar. Por trás dos cabelos tingidos a preocupação com filho que demorou a chegar, da conta que não fechou, do exame que está por vir, do emprego perdido, mas também das noites mal dormidas pelas festas, pelas comemorações, pela celebração do amor.

De definitivo sabemos que o tempo passa. Que não há mal em um pouco de vaidade, mas de sermos escravos dela. Que não inventaram borracha de apagar nem caneta de acrescentar pedaços do que fomos e vivemos, e que o apego exagerado a exterminação de todos os sinais do tempo é o que merece ser revisto, muito mais do que os sinais em si.

"Benditos teu pai e tua mãe; benditos os que te amaram e os que te maltrataram; bendito o artista que te adorou e te possuiu e o pintor que te pintou nua, e o bêbado de rua que te assustou, e o mendigo que disse uma palavra obscena; bendita a amiga que te salvou e bendita a amiga que te traiu...", disse Rubem. Bendita seja toda nossa realidade e as marcas que ela deixou e deixa. E que reparar ou não cada uma delas seja apenas um detalhe, nunca uma escravidão.


Paula Garruth Colunista

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