Inabitada - Jornal Fato
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Inabitada


Nem medo, nem melancolia. O que faltava era o rosto na janela e a voz serena abençoando o dia. O silêncio lhe dizia: você sabia que seria assim, a casa vazia, os vizinhos indiferentes e o encontro assustado todas as noites com as sombras na parede. Você sabia e ainda assim foi. Dessas descobertas que se morre dizendo que foi uma experiência válida para a vida inteira. Desde o dia em que decidiu conhecer o outro lado foram inesquecíveis madrugadas com seres notívagos que brincavam naquela suposta liberdade. As insônias que lhe fizeram lembrar orações de infância. Salve, Rainha, mãe da misericórdia, não abandone os que estão no vale de lágrimas. Não se dava ao trabalho de ouvir seu coração apertado. Era só. Só ela e o espelho. O bendito espelho antigo que o outro não quis levar embora. Ficou ali ocupando espaço, mostrando-lhe as olheiras dormentes, a roupa na corda, a reza no canto da boca. Ó clemente, ó piedosa, ó doce e sempre Virgem Maria. Não nos deixeis cair em tentação, Santa Mãe de Deus. Na janela, a chuva que não veio e a aridez das palavras. Sabia que seria assim e ainda assim foi. Agora, reze para a noite passar rápido enquanto rabisca a memória do nada, enquanto o vento sacode as árvores no quintal fazendo zumbir sons estranhos pela casa. Não há o que temer. As portas estão fechadas. Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós. As sombras do gato Cigano bailam nas paredes recém-pintadas. O animal enrosca-lhe as pernas procurando abrigo, está com medo do silêncio. Na hora santa acende uma vela para Nossa Senhora. A mulher revestida de sol, aquela que sempre vem na manhã seguinte anunciando nova aurora. A mãe que acena na janela e aguarda pacientemente a volta do filho. A casa vazia não atormenta aquela que espera, mas emudece quem está longe, sozinho. Rogai por nós Santa Mãe de Deus, para que sejamos dignos das promessas de Cristo. Para que os filhos no mundo inteiro voltem para casa às noites e todas as mães sejam felizes. E que não faltem o pão, o riso e a mãe a nos acenar.


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