Aruanda é caridade... - Jornal Fato
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Aruanda é caridade...

A poesia de um caboclo é folha verde ao coração


- Foto: Lucas Martin

Iê!
Okê Arô, meu rei Oxóssi,

caçador que nada teme,

eu te peço, nesta prece,

saúde e proteção perene.

A poesia de um caboclo

é folha verde ao coração,

que tem tudo no pouco,

conquistado em oração.

Sete Flechas e Jurema

riscam ponto ao meio-dia;

no traço deste poema,

curam-me da agonia.

Camará...

 

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Faço aniversário em vinte e quatro de agosto, embora eu tenha nascido, a bem - e além - da verdade, em treze de maio, "numa manhã de liberdade" que, finalmente, justificou um sonho que eu tivera alguns maios antes, no dia oito.    

Desse sonho, convém-me narrar apenas o instante em que avistamos, à margem esquerda de uma estrada de roça, uma laje natural de pedra, à beira da qual acontecia uma gira, com diversas senhoras, todas de vestidões brancos, dançando em torno de uma roda, ao som dos atabaques.  

Uma imponente mata abraçava o espaço em que ocorria o canjerê: um terreiro de terra batida onde, ao fundo, deslizava - serena - uma cachoeira. Ali, então, uma cabocla nos prenunciou que, quando a chuva fina cair do céu, enfim chegará a preta-velha Izabel. À bença, vó.

 

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Qual é a diferença entre uma cientosca a esbravejar que religião não é medicina (ao contrário de sua infâmia, "nenhuma tradição de terreiro advoga pela substituição da ciência", segundo bem empreteceu o professor Sidnei de Xangô), um assassino de ialorixá - esta também líder quilombola - e um oficialóide de justiça a zombar de uma curimba à beira-mar?  

Nenhuma. Os três detratores têm um alvo em comum: nós, que cremos na encruzilhada como redenção, e não perdição. Diferentemente do subtítulo daquele filme, os inimigos sempre foram os mesmos.  

No mais, peço perdão se, aqui, extraio palavras não do meu coração, e sim do meu fígado, que excreta tão somente o amargor desses recentes fatos. Ah, meu São Jorge Benjor, o Brasil pode até ser "bonito por natureza". Todavia, ao menos por ora, nem tudo está beleza.

 

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Andei redigindo torrada com margarina, ao invés de escrever mel com dendê, minha verdadeira vocação. A tempo, contudo, extirpei o excesso de amenidade que havia em mim - até o doce lirismo das alvoradas deve ser apreciado com moderação - e retomei a picardia que, por pouco, não a abandono de vez, submersa em alguma xícara de insipidez.


Felipe Bezerra Jornalista

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