As latinhas de atum e o amanhã - Jornal Fato
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As latinhas de atum e o amanhã

Uma reflexão sobre os abismos sociais de nosso país.


- Foto Reprodução Web

Não costumo prestar atenção em nada que não seja o trânsito enquanto estou dirigindo. O medo exacerbado de atropelar alguém ou de uma "fechada" de um motociclista me acompanha no carona. Mas dia desses, descendo pra labuta rotineira, entre as vielas da comunidade "belavistana", a realidade me lascou um belo tapa, me fazendo desviar o olhar. Na esquina, bem na esquina mesmo, próximo ao ponto final do ônibus, sentada no chão, uma menininha brincava com latinhas vazias de atum, barro e um palitinho. Pés descalços, só de short e o narizinho revelando uma gripe (?). Faz tempo que não me lembro de ficar tantos dias com uma cena ocupando boa parte das minhas lembranças. Faz tempo que a realidade não me esmurra desse jeito. Faz tempo que não vejo a vida resumida, em tantas formas e possibilidades, num tempo tão curto quanto o "passar".

Passei rapidamente, não podia parar o carro ali e conversar com ela, queria saber o que estava cozinhado, qual era o prato do dia e se aquela ilusão era fruto da fome ou da fartura. Tá, sou boba não. Sei que fartura por ali é uma pompa que a realidade não proporciona. Seletiva, ela tem por hábito ser mais cruel com quem sente a dor do estômago vazio.

Ali, em alguns segundos, passei por três lugares/tempo: passado, presente e o lugar do outro. O passado me fez refletir sobre todas as lutas sociais e o avanço que conseguimos até aqui. O presente, como essas lutas não conseguiram alcançar aquela mocinha na esquina cozinhando barro. E o famoso e pouco visitado lugar do outro, até onde essa criança e seus tutores se importam em saber. Isso não é uma crítica, e sim uma dúvida. Até onde não saber ou não se importar ou conhecer impacta nos tempos verbais da vida? Saímos há pouco de um processo eleitoral democrático, autêntico e favorável à horizontalidade da população, mas que ainda é questionado e repudiado por uma parcela ínfima que insiste em ocupar o lugar que não lhes cabe. Seja em rodovias, Linhas Vermelhas ou Amarelas, ou calçadas de quartéis. E que ignoram a necessidade de tornar real a equidade social. Ignoram a criança na calçada, desprezam a dor do estômago vazio aos gritos de "ordem e progresso" embalados pela melodia do hino nacional e cobertos por arrogância.

O lugar da criança que brinca de cozinhar o barro me fez perceber o tanto que tudo ainda é pouco, incerto e miserável. E o tamanho da responsabilidade de quem governa, em caminhar a passos largos para reduzir o impacto causado pela desigualdade social no Brasil, alcançando as vielas mais estreitas das comunidades.

Daqui a alguns dias, o país vira a página de uma era de terror. Foram quatro anos de desgoverno, de retrocesso social, cultural, educacional e econômico. Quatro anos de redução de políticas públicas de atenção à mulher, à comunidade negra, indígena. Quatro anos de genocídio da democracia. Espero (utopia minha, talvez) que o clichê "ano novo" coloque em suas costas robustas a necessidade do povo brasileiro de comer, dormir e estar em segurança. O resto a gente faz como a criança da esquina: coloca nas latinhas de atum e cozinha para o amanhã.

 

Thatiane Cardoso 
Jornalista

 


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