Lágrimas - Jornal Fato
Artigos

Lágrimas

Derramei lágrima: acho que foi uma. Não, foi mais de uma.


- Foto Reprodução Web

Derramei uma lágrima dias atrás, era um fim de tarde. Estava cansado, o corpo doía e não me animava para a caminhada ou exercício físico, algo raro na rotina dos meus dias. Derramei lágrima: acho que foi uma. Não, foi mais de uma. Na verdade, conto agora, sem saber se realmente a derramei. Acho que imaginei ou senti um leve ardor em minha pálpebra. Tenho dúvidas se foi lágrima em minha face. O nosso tempo nos leva a isso: em meio às agressividades, e tristezas, surge a indiferença às coisas vistas no dia a dia. Em dias atuais, com as mazelas que vivemos e assistimos, com o agravamento do quadro social, com deterioramento das relações afetivas, com os comportamentos agressivos e suicidas, a dúvida procede. Emoção e revolta alternadamente. As notícias em jornais, televisão e rádio da violência diária nos faz pensar em vingança e pouco em justiça. Entre a melancolia e indiferença, desejamos a vingança.

A lágrima ameaça retornar a todo instante. Assemelha-se a algo virtual, não parece pertencer ao nosso corpo. Não a sentimos de fato. Está fora de nós, distante, não a sentimos realmente. Assemelha-se a um filme, imagem fotográfica, uma tela de computador. Até que a realidade de um estampido de arma de fogo ou a lâmina fria de uma arma branca em nosso corpo, ou no corpo de um parente próximo, nos tire da virtualidade. Vivemos anestesiados, alternando ficção e realidade. Tempos atrás, quando no mundo real, derramei lágrimas pela médica - brutalmente assassinada pelo marido; lágrimas pelo suicídio do copiloto do avião nos Alpes franceses; pelas mortes de refugiados no mar mediterrâneo; pela adolescente estuprada pelo pai e pelo indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips na nossa Amazônia. Lágrimas que desapareceram rapidamente. Demoraram o tempo de um piscar de olhos. O tempo de um pensamento, o tempo de não mais pensar. O esquecimento, a seleção de memórias, o não lembrar, única forma de vivermos ou sobrevivermos.

É... Mas não é tão fácil a montagem da rede de proteção sentimental. A todo instante ela é ultrapassada. Pois, somos humanos, a vulnerabilidade é imensa. Mais ainda com os sentimentos. Por mais que não pareça, sentimos muito, escondemos nossas lágrimas, acumulamos angústias. Na última semana derramei lágrimas pelos pacientes da UTI, enfermaria e pronto socorro dos hospitais; derramei lágrimas pelas mulheres do Afeganistão e por todos os refugiados pelo mundo afora; derramei lágrimas pela saudade do meu neto; derramei lágrimas pelo cansaço físico e mental de médicos, enfermagem, fisioterapeuta, assistente social, psicólogo, nutricionista, atendentes, secretárias, maqueiros e todos os técnicos da área de saúde. Com muito deles aprendemos a resiliência. Alegram ambiente hospitalar e familiar. Não se queixam da dor física. Nesse tempo não deixam que as lágrimas se tornem salgadas. Por isso, pensei... uma lágrima pode nos livrar de um peso da alma. Mesmo sem a razão, reflete a dor imensa que carregamos. Quando não deixamos salgar a lágrima, elas podem até existir, e muitas serem de alegria. Difícil é separar momentos, aceitar adversidades. Quanto a mim, por tudo que vi, ouvi e senti, nos últimos tempos, produzi lágrimas, ou pelo menos a sensação, pois, mais não fiz.


Sergio Damião Médico e cronista

Comentários