Palimpsesto - Jornal Fato
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Palimpsesto

Os textos, na Idade Média, eram apagados, e sobre estes, reescritas novas histórias. Com isso, perdemos muito do passado


- Foto: Reprodução/Web

São textos de pergaminhos - um preparado de pele de animal, geralmente de ovelhas, cabra ou carneiro, provavelmente originário da cidade grega Pérgamo ou de papiros - um preparado de folhas desta planta proveniente do Egito. Os textos, na Idade Média, eram apagados, e sobre estes, reescritas novas histórias. Com isso, perdemos muito do passado. Carlos, do lugar onde se encontrava, em leito de Pronto Socorro do hospital, pensou na palavra e no que fazia com sua memória durante as horas em que se encontrava no compasso de espera por um diagnóstico da sua dor torácica. Durante a manhã, e o início da tarde, em pensamento, escreveu e reescreveu o seu passado. Refez sua história de amor e paixão pela Márcia; sua história com sua família (esposa e filhos) enquanto aguardava o desfecho do seu caso clínico, na esperança que ainda existisse tempo para um futuro. Ao reescrever, em pergaminho mental, perguntava-se a todo instante: ainda teria tempo de vida para mais histórias? A mente encontrava-se preenchida de dúvidas, nenhum texto à vista. Um apagão de ideias para o futuro. Teria tempo para escrever sua história final?

Tempo...  Pensava: Parece que foi ontem os encontros voluptuosos, as caricias e beijos, as horas de paixão com Márcia. Porém, se passaram vinte anos. Parecia uma eternidade sua presença no Pronto Socorro do hospital, passara-se seis horas. Apenas algumas horas... Sentia-se como Sísifo, personagem da mitologia grega, pela vida sem sentimento que vivera em seus últimos vinte anos. Pelo menos, nosso herói mitológico apresentava um excessivo amor por este mundo. Carlos vivera desesperançado, vivera em seus últimos tempos, com um vazio imenso. Alguns diziam: era o vazio de Deus, um absurdo da vida. Sísifo, nosso herói, mesmo condenado a levar uma pedra ao topo da montanha, mesmo sabendo que seria um trabalho inútil e sem esperança, pois ela rolaria montanha abaixo, ainda assim permanecia na labuta diária por amor ao nosso mundo. Carlos vivera sem sentido, vazio de amor e de esperança. Sem apego às coisas deste mundo.

Nas últimas horas, deste dia de angústia, onde a morte o rondava, nesses últimos instantes que poderiam ser seus instantes derradeiros, além de reescrever, em pensamento, seu passado; além da construção do seu palimpsesto, ele ouviu, no Pronto Atendimento, muitas histórias de pacientes e familiares. Uma o sensibilizou. Ouviu do senhor que se encontrava ao lado da mulher, uma mulher em estado terminal, em tratamento de conforto, onde não seriam realizadas as manobras de ressuscitação, caso acontecesse a parada cardiorrespiratória. O marido encontrava-se com as mãos junto ao corpo da mulher amada. Carlos ouviu: "Ela passou a vida toda cozinhando o arroz para ele. No fim da vida ela perdeu a visão. Ele passou a cozinhar o feijão e o arroz. Passou a alimentá-la." Como alimentamos um passarinho no início e fim de uma vida. Era um vínculo de casamento. Um vínculo de amor. Carlos, ao contrário, sentia que não criara nenhum vínculo. Permanecia sozinho.


Sergio Damião Médico e cronista

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