Uma voz - Jornal Fato
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Uma voz

A voz é uma das poucas coisas que fica até o fim da nossa existência


- Foto Reprodução Web

Da janela do apartamento, antes do amanhecer, com o crepúsculo, vejo ao longe o conjunto de montes. Um enfileirado de montanhas e pedras que a natureza moldou e cercam nosso vale, a cidade e o rio Itapemirim. No ponto em que me encontro, o Pico do Itabira se destaca, desponta também o Frade e a Freira e o restante das pedras e montes que não consigo nomear. As cores se misturam. Um leve vermelhão, junto ao céu, bem ao fundo, deixa transparecer e anuncia o dia ensolarado que está por vir. Permaneço na escuridão, a escuridão permite as pupilas se dilatarem e, ao se alargarem, deixam ver com clareza aquilo que nem a luz do dia oferece. Se alguém perguntasse, o que Cachoeiro tem de mais bonito? Eu diria: suas pedras e montes. Não as pedras que servem ao comércio. Mas aquelas que devemos preservar. A visão nos dá as cores, as formas, coisas que animam a alma e aguçam nossos sentidos. Saturados pelas imagens, ainda assim, ficamos seduzidos pelos desejos dependentes da visão. Mas, pensei em um sentido distante, naquele que meu pai, moribundo, me despertou, um som longínquo, necessário encostar os ouvidos bem próximo aos lábios do outro. Uma intimidade sonora, poucas vezes experimentadas. Lembrei de sua voz. Uma voz autoritária. Mesmo no leito hospitalar, com a força física se esvaindo, com o corpo franzino, cabelos ralos e brancos, mesmo assim, a voz se destacava. Como se eu criança e ele a orientar o que fazer. Uma voz do passado, voz que incentivava e elogiava. Voz que constrangia pelos exageros dos elogios que me fazia. Voz que falta no presente, que falta em meus dias. Nos dias que nos encontramos sozinhos e combalidos.

A voz é assim. Uma das poucas coisas que fica até o fim da nossa existência. Perdemos a elasticidade da pele, dos músculos e veias, perdemos a visão, deixamos de ouvir. A voz permanece em nós. A voz que nos identifica por toda uma vida, na luz do dia e na escuridão, mesmo sem sermos vistos. É bom ouvir a voz da pessoa amada, dos seres queridos e mesmo daqueles que não falam nossa língua. Ouvir sons que transmitem paz. Ouvir o som dos pássaros, do mar, das cachoeiras. Os diversos sons da natureza. O poeta, no exílio, não pede as imagens do seu país. Solicita que gravem o som das coisas que deixou. O som das ondas do mar da praia de sua adolescência; o som dos ventos sobre as folhas das árvores na cidade de sua infância; o som das águas do rio que corta sua última cidade. Nos sons recolhidos, com os olhos vendados recupera, em sua memória, as imagens esquecidas. A razão do seu viver. Ao nascermos emitimos som: o choro, uma alegria para todos. Um sinal da vida. O princípio de tudo e o início do fim. Com o tempo, o bebê adormece ao som da cantiga da mãe. A voz que embala é a mesma que alerta e orienta. Com o tempo esquecemos de ouvir. Preferimos o som dos celulares. São rápidos. Desligamos ou não atendemos quando incomodam. Quem sabe um dia possamos voltar no tempo e ouvir os sons escondidos dentro de nós. Colocar o ouvido junto à terra onde crescemos e, como nossos ancestrais, entender a mensagem inicial.

 


Sergio Damião Médico e cronista

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