Lamentações - Jornal Fato
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Lamentações

Mudou de ideia, lamentaria o tempo perdido


"Lamentar uma dor passada, no presente, é criar outra dor e sofrer novamente." Os versos da poesia inglesa apareciam na mente de Carlos. Permanecia no Pronto Atendimento do Hospital. O médico informava sobre a necessidade do exame de tomografia de tórax, faria sem o contraste iodado devido à alteração da função renal em consequência da hipertensão, diabetes melitus e tabagismo. Eram 10 horas da manhã, desde que chegara, às sete horas, com a angustiante dor no peito e exames coronarianos normais, a angústia da espera o levara a pensar em Márcia, grande amor de sua vida de vinte anos atrás. Naquele instante, na agonia de se ver no fim de seus dias, procurava entender a razão de sua solidão. Seus pensamentos foram interrompidos pela aproximação de uma maca, foi encaminhado à sala de exames. Encontrava-se em jejum, desejou um café, não foi possível. Durante o exame tremia: frio e medo. Lembrava-se da família, pessoas que deixou esquecida até aquele instante. Não lamentaria as dores passadas. Desconhecia o autor dos versos das Lamentações, mas se encantava com o encadeamento da musicalidade poética. Durante seus setenta anos de vida, a poesia era a forma de conviver com os momentos de solidão. Apesar da aparente rudeza de gestos e palavras, em suas entranhas apresentava-se um ser doce não revelado.

Permanecia na sala fria e solitária. Os ruídos provenientes do aparelho não apagavam suas lembranças. Era um homem confuso, de difícil definição, pior ainda em seus relacionamentos interpessoais: alteração de humor diário, avareza e necessidade de acumular bens materiais se sobressaíram em seu tempo de vida. A avareza e o egoísmo afastaram pessoas: filhos e esposa. Também, os poucos amigos de uma longa vida. Procurou na memória, um momento de realização, um instante feliz, não encontrou. Recordou o encontro com Márcia, um amor não realizado. O ruído o faz despertar das lembranças. Imagens eram tomadas, seu destino gravado. Uma pequena luz aparecia ao fundo, não sabia decifrar, uma sala de controle talvez. Ouvia vozes, o frio incomodava. De repente, o silêncio. Voltaram os atendentes. No Pronto Atendimento, ainda na maca, o médico se aproxima e informa: Temos uma pista para a causa de sua dor torácica. As imagens revelam um aneurisma em sua aorta. Necessitamos repetir o exame com contraste iodado, apesar da doença renal. Dependendo do resultado o tratamento é cirúrgico, completou. Aguardará a realização do exame na sala de emergência, monitoraremos seus sinais vitais. Após as palavras do médico, e transferência para cuidados intensivos, se deu conta do agravo de sua saúde. Apesar da ignorância sobre os assuntos médicos, entendia que sua principal artéria encontrava-se rompida, quase em duas partes. Eram 11 horas de uma manhã nublada. Vários outros médicos e estudantes se aproximaram. Reviam seus exames. Observavam a diferença de pressão de um braço para o outro - uma diferença significativa. Perguntaram se necessitava de algo. Sim, respondeu Carlos. Preciso de um telefone celular. Preciso falar com meus filhos. Mudou de ideia, lamentaria o tempo perdido.

 

Sergio Damião Santana Moraes

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Sergio Damião Médico e cronista

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