Deu no poste - Jornal Fato
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Deu no poste

Já presenciei, na juventude, o choro de uma mulher da vida (dolorida), apesar de nenhuma lágrima ter se insinuado em seus olhos


- Foto Reprodução Web

Quem aprecia minha literatura de chá de camomila, temperada ao sabor de manhãs agridoces, ilusões borboletantes e bem-te-vis rezadores, não imagina as valas negras nas quais já fui obrigado (de nada) a velejar. O que, pensando melhor, talvez seja uma deixa de responsa para então te contar "o que vi nos lugares onde andei". Só não vá se pasmar.

Certa noite, numa birosca, testemunhei um vagabundo se safar de uma tremenda surra, encomendada por seu desafeto de estimação, que pagara duzentos merréis a dois indivíduos para executarem o serviço sujo. Ocorreu - eis o milagre da sarjeta - que a pretensa dupla de batedores de aluguel e seu alvo beberam, juntos, toda a quantia investida pelo opositor. O veneno, convertido em remédio, desceu estupidamente gelado.

Também já presenciei, na juventude, o choro de uma mulher da vida (dolorida), apesar de nenhuma lágrima ter se insinuado em seus olhos. Parecia-me cantar alguma ausência intangível, rediviva, entretanto, graças a uma balada pagomântica - "...você não sabe o que eu sofri" - que ela mesma havia colocado para tocar na jukebox do meretrício, que ficava no segundo andar de um centenário e lastimável sobrado em São Cristóvão.

Tiro da manga do paletó, ainda, uma tarde sinistra a bordo do 701, sentido Madureira, no qual embarcaram, na altura da Cidade de Deus (nos acuda), dois elementos intencionados a roubar na própria área, desobedecendo a uma das regras primárias do movimento, se é que vocês me compreendem. Semanas depois, ambos não estavam mais no pedaço para se justificar: voltaram, meu caro Jung, à "poeira das estrelas".

Minha literatura, afinal, é sustentada por postes instalados em esquinas e encruzas, cravejados de anúncios de biscateiros de utilidades - ou trambiques? - mil, cartomantes charlatãs e revendedoras de cosméticos, além de resultados do jogo do bicho. Num desses postes, picharam um coração e, dentro dele, as iniciais dos nossos nomes.

 

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- Nossa, Felipe, tudo isso é suor?
- Não, filha. Na verdade, são orvalhos matinais a deslizarem, sorrateiros, pela relva do meu corpo, extensão territorial que, ao contrário do que pensam alguns estediosos, permanece inabitável por civilizações intrusas.

 

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Creio em todo o sinal

avisado nas estradas.

Ontem, vi cobra coral

no asfalto esmagada.

Ô, livrai-me, São Bento,

de venenos, maldições,

de ruins sentimentos

e de suas danações.

 


Felipe Bezerra Jornalista

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