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Toda flor

Passei por Mimoso do Sul, dias após a mais devastadora enxurrada de que se tem notícia por lá, misericórdia!


- Foto: Ronaldo Santos

Até chegar a esta semana, em que completo um outono nesta esquina de página, dei bastante volta ao mundo, camará. Durante o trajeto, corri campina afora, à procura de alecrins e versos. À noitinha, ajoelhava-me diante de vovós rezadeiras, em chão de terra benzida. Deus te abençoe, fio.   

Passei, ainda, por Mimoso do Sul, dias após a mais devastadora enxurrada de que se tem notícia por lá, neste 2024 que, misericórdia!, ficará marcado para sempre na memória coletiva (e alma idem) de seu povo. Estive na cidade, a trabalho, em duas ocasiões.

Na primeira, conheci um nego véio, que se dirigiu a mim para se informar sobre locais de vacinação. Um parafuso, chafurdado na lama, havia perfurado sua pisada, e ele precisava receber uma dose de antitetânica - e de alento.

De marmita na mão e riso no rosto, aproveitou para me contar que sobreviveu à catástrofe graças a uma atípica insônia (Aruanda lhe avisava, não me restou dúvida), endossada por seu cachorrinho, que lhe latiu, de madrugada, a tempo de salvá-lo da enchente. Fidelidade canina, bravura genuína.    

Na segunda visita, ao observar o "rastro de destruição" - ó, clichê, por que não me largas? - deixado na cidade, enfim chorei, Aldir, com piedade de Mimoso, que também tem o seu Redentor. Contudo, pouco antes de sair de lá, vi um casal de adolescentes se abraçar e se beijar.

Toda flor há de nascer, também, após a tragédia.

 

****

 

No domingo "depois dos temporais", quase um verso de Vitor Martins, quatro garotos jogavam bola no campinho embaixo de nossa "janela lateral do quarto de dormir". Seu chão estava todo embarreado, com poças d'água cuja coloração me trouxe de volta à boca o sabor de leite com Toddy de minha meninice.

Os brincantes (e eu também, de incerta maneira) se esbaldavam feito pintos no luxo da infantojuventude. A mesma lama que sucumbe pode renovar. "Gooool!", gritou um deles, que o marcou, ao comemorar - inconsciente e blanquinianamente - a "imortal vitória da ilusão".

 

ESBOÇO DE CANÇÃO NOVA

(QUE NADA TEM A VER COM TELEMISSAS)

Me habita o hábito,

mas não me pertence.

Eu o evito no grito,

por medo estridente

de cair-me em mim.

 

(Ah, perdão, Dorival

por chinfrim trocadilho;

não me leve a mal

por tocar o zaralho.)


Felipe Bezerra Jornalista

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