Independência das pessoas com Síndrome de Down - Jornal Fato
Especial

Independência das pessoas com Síndrome de Down

Nem sempre é fácil para os pais, mas é preciso trabalhar a autonomia e respeitar as decisões dos filhos com Down


Foto: Arquivo Vitória Down

Casar, ter filhos, dirigir automóveis, ter conta em banco, estudar em escolas regulares, disputar cargos públicos e trabalhar em empresas privadas. Esses são alguns dos direitos que propiciam às pessoas com deficiência, dentre elas as com Síndrome de Down, independência e liberdade para decidir os melhores caminhos a serem seguidos em suas vidas.

De acordo com a advogada Maristela Lugon, mestre e doutoranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), a Constituição Federal reconhece a todas as pessoas, sem qualquer distinção, direitos iguais. Ela ressalta que a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD) da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2006 foi promulgada no Brasil pelo Decreto 6.949/2009 com força de Emenda Constitucional.

"Na Convenção a autonomia e independência das pessoas com deficiência é um princípio que deve ser respeitado por todos. Às pessoas com deficiência devem ser dados todos os apoios necessários para que elas tenham a maior autonomia e independência possível", esclarece.

Lugon destaca que a Lei Federal 13.146/2015, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), reconhece a plena capacidade civil das pessoas com deficiência como, por exemplo, para administrar as próprias finanças. Caso não se sintam preparadas, explica a advogada, elas podem contar com a tomada de decisão apoiada, introduzida no Código Civil pela LBI. 

"A curatela passou a ser exceção e não mais a regra para pessoas com deficiência intelectual, como ocorre na Síndrome de Down. Temos inúmeros exemplos no Brasil e no mundo de pessoas com Down que administram seu próprio empreendimento", observa.

Outro assunto abordado pela advogada foi a questão dos relacionamentos pessoais. As pessoas com Down têm todo o direito de se casar, ter filhos, inclusive, de adotá-los, e também direito à educação para a vida sexual, o que, na opinião dela, pode ajudar a evitar abusos e violência doméstica. Além disso, depois da maioridade civil não precisam mais de autorização dos pais ou responsáveis para uma série de atividades.



"Devemos lembrar que são pessoas plenamente capazes. Têm o direito de fazer escolhas do estilo de vida e de moradia que querem ter na fase adulta, assim como qualquer um de nós. A CDPD quebrou o paradigma da pessoa com deficiência como alguém incapaz de viver com independência. Hoje, com o modelo social da deficiência todos somos responsáveis pela inclusão social. 

A advogada chama a atenção para a necessidade de as famílias das pessoas com Down evitarem a "superproteção" dos filhos, pois é preciso compreender que eles se tornam adultos capazes de tomarem as próprias decisões:

"O respeito pelas escolhas é fundamental. A infantilização de adultos com Down pode ser observada nos diálogos com a família e no modo de tratamento dado a elas em estabelecimentos públicos e particulares", pontua Lugon.



Para Maristela Lugon, é fundamental o desenvolvimento de políticas públicas para a efetivação das leis existentes: 

"Um dos direitos mais desrespeitados ainda hoje é o direito ao tratamento precoce quando as crianças nascem com problemas cardíacos e necessitam de intervenção cirúrgica precoce. Infelizmente, muitas crianças ainda falecem enquanto aguardam a cirurgia. Acredito que uma política pública mais ágil no diagnóstico e encaminhamento ao tratamento adequado pode salvar muitos pequenos com Down", conclui.

Desenvolvimento de habilidades

Uma das instituições que trabalham para auxiliar pessoas com Down a descobrirem suas potencialidades é a Vitória Down, fundada em 1988. Daniela Rosa, colaboradora do Centro de Desenvolvimento de Habilidades e Inclusão (CDHI) da entidade, conta que o espaço proporciona variadas possibilidades de estímulos e desenvolvimento de habilidades. Além disso, é um local de acolhida, trocas, convivência e fortalecimento de vínculos.

Rosa destaca que são oferecidas diversas oficinas e que é feita a experimentação junto aos usuários para que eles mesmos possam escolher de quais vão participar:

"Atualmente ofertamos oficinas online de dança, música, teatro, atividade física, atividade de vida diária, fotografia, culinária, Meu Lugar no Mundo e Aprender Brincando. Hoje temos frequentando as oficinas crianças de 2 anos até pessoas de 49 anos. Em média, 45 pessoas matriculadas", diz.

Ela reforça que o centro possui um sistema que aposta no desenvolvimento de habilidades das pessoas com Down e que esse aprimoramento das aptidões pode ocorrer durante a vida inteira, da infância a idades mais avançadas. O foco é na autonomia, mirando as possibilidades, os talentos individuais e o apoio na construção de novos repertórios de vida.

"Sabemos que para as pessoas com deficiência, principalmente, intelectual, esse processo de autonomia, de possuir o desejo de escolha, muitas vezes não é trabalhado nas famílias durante seu crescimento (a escolha de uma roupa, uma comida, uma atividade de lazer (...). Nesse sentido, nesse processo de escolha, nosso foco está voltado para produzir uma reflexão em todos os membros da família e na própria pessoa sobre seu empoderamento", frisa.

Com a pandemia do novo coronavírus, entretanto, foi preciso alterar a forma de trabalho do CDHI. As oficinas passaram a ser ministradas de forma virtual, um desafio para usuários e mediadores. "Podemos dizer que isso foi feito da melhor forma possível e hoje, apesar do grande problema da reclusão e da falta de interação, pois sabemos que as pessoas com deficiência sofrem muito com a pouca possibilidade de contato e de socialização, estão se desenvolvendo e caminhando", salienta.

Estímulo à independência

Uma das frequentadoras do centro é Anna Luísa Manni. Aos 20 anos, é uma jovem que esbanja vitalidade.



Na Vitória Down, Anna participa das oficinas de teatro, dança e culinária. Já no tempo livre gosta de navegar pela internet, ir à piscina do condomínio onde reside na Serra e passear no shopping. Quando nasceu com Down foi uma surpresa para a família, como conta a mãe Maria Bernadete Ferreira Manni. 

"Fiz um pré-natal bacana, mas não descobri na gravidez. A Anna nasceu e a médica falou que era grande a chance do Down. Foi uma cesárea, estava operada e pensei 'se Papai do Céu mandou é por algum motivo'. Eu nunca tive medo, muito pelo contrário. Corri atrás dos exames, fui entender como ela era, o que precisava, descobrimos que não tinha cardiopatia nem problemas no cérebro. Eles podem vir com várias anomalias e ela não tinha nada disso", agradece.

A partir de então, Bernadete começou a procurar formas de dar a filha desde nova as melhores condições possíveis para o desenvolvimento das capacidades dela. A busca envolveu procedimentos na área da saúde, educação, entre outras atividades. "Fomos tentando entender e vendo onde poderia evoluir, mas tem um custo alto e o governo é péssimo nisso aí, não dá muitas condições. Não oferece muitas coisas", lamenta.

Ela ressalta que preparou um planejamento anual com metas para o desenvolvimento da filha, que teve receio de que Anna não conseguisse se alfabetizar, mas que nunca desanimou diante das dificuldades. "A gente tem de ter muita perseverança. Você vai dando informação, mas é muito no tempo deles", explica.

Anna estudou até a 8º série do ensino fundamental em escolas regulares públicas e particulares. Porém, a família considerava que o ensino não era o mais adequado para as dificuldades dela e que os professores não tinham a capacitação suficiente para lidar com pessoas com Down; por isso, sempre pagou por aulas de reforço. "Eu sempre pensei na escola como socialização, mas nem para isso estava funcionando, pois os grupinhos não falavam com ela", desabafa Bernadete.

Na instituição que frequenta na parte da tarde, Anna consegue interagir melhor com os colegas. Nas aulas de atividade da vida diária aprende coisas do cotidiano como higiene pessoal, limpeza de ambientes e tarefas domésticas. "Eu ajudo em casa, lavo louças e faço comida. Eu sei fazer panqueca, mas não posso comer alimentos que contêm glúten e lactose", afirma. 

Bernadete conta que a independência da filha para assuntos pessoais foi fruto de muito trabalho.



De maneira geral, Bernadete diz que as pessoas se surpreendem com o desenvolvimento de Anna. "A questão da fala, da dicção, de ser alfabetizada, pois a maioria não consegue, e ela escreve e lê bem", frisa. Para chegar nesse nível, todavia, foi preciso muita perseverança. "Tem de prestar atenção nos detalhes, ninguém vai vir pronto. É muito legal quando você vê o resultado de um processo", completa Bernadete.

No início de 2020 uma nova oportunidade surgiu e Anna arrumou o primeiro emprego. Ela começou a trabalhar no período da manhã em uma farmácia em Jardim Camburi, onde organiza as prateleiras, atende clientes e realiza outras tarefas. "Fiquei muito ansiosa, mas minha mãe e meu pai me incentivaram", revela. Com o dinheiro do trabalho, chegou a comprar uma televisão e um notebook. 

Segundo a mãe, foi possível notar uma melhora imediata no comportamento da filha após os primeiros dias no serviço. "Eu percebi uma diferença enorme nesse tempo. Ela ficou mais madura, responsável. Acordava de manhã, colocava o uniforme, o sapato, fazia o coque no cabelo", enfatiza. 

Com a pandemia do novo coronavírus, contudo, Anna acabou se afastando do emprego por precaução, mas, quando tudo isso passar, espera retornar aos dias de labuta na farmácia. Também pretende aperfeiçoar o aprendizado nas áreas de matemática e de informática. Bernadete acredita que futuramente a filha pode conseguir bons empregos mesmo sem fazer um curso superior. 

Data

Em 21 de março é celebrado o Dia Internacional de Síndrome de Down. A data está no calendário oficial da Organização das Nações Unidas (ONU) desde 2006, tendo sido idealizada pelo geneticista da Universidade de Genebra Styliano Antonarakis. A ideia é chamar a atenção da sociedade para a necessidade de inclusão das pessoas com Down. 

O dia 21/03 foi escolhido como uma referência à chamada trissomia do cromossomo 21 (T21), como é conhecida a Síndrome de Down, que não é uma doença, mas uma condição genética determinada pela presença de três cromossomos no par 21. No total temos 23 pares, totalizando 46 cromossomos. Dessa forma, as pessoas com Down possuem 47. As causas para a variação ainda são desconhecidas.

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