Festival de canjica - Jornal Fato
Artigos

Festival de canjica

É o milho que, na Semana Santa, entra como matéria-prima no preparo da canjica, que não passa de uma papa mais sofisticada


- Foto Reprodução Web

Manda a boa educação que a gente deve oferecer alguma coisa pras visitas. Quem tem um poder aquisitivo melhor, serve uísque de boa marca em copos de cristais. Quem é remediado, que fica ali, na zona fronteiriça, porque não é rico nem pobre, é hora de tirar da cristaleira aquela bandeja de prata, presente de casamento, guardada há séculos, e nela servir às suas visitas um refresco de frutas tropicais. Já o pessoal da prateleira de baixo, que não tem eira nem beira, vai mesmo é de cafezinho pra quem aparecer em sua casa.

Lá na roça, há outras alternativas, e tudo no seu tempo certo. Gente do interior tem mais criatividade, na hora de fazer um agrado pras visitas. Época de milho verde, por exemplo, ainda hoje, adivinhe o que rola de montão? Quem disse papa acertou. Sujeito mergulha na lavoura, vai escolhendo as espigas maiores e enchendo a quiçamba, que é um cesto fabricado de taquara ou de bambu, muito usado, ainda hoje, no interior. Em casa, é só descascar, debulhar, jogar no liquidificador ou na máquina de moer ou, quem não tem nem uma coisa nem outra, vai ter mesmo que usar o ralo pra esfregar a espiga até ficar no sabugo.

Também é o milho que, na Semana Santa, entra como matéria-prima no preparo da canjica, que não passa de uma papa mais sofisticada. Leva, ainda, leite de vaca, coco e amendoim. Foi exatamente na época de um "festival de canjica", no interior, que Tio Dedé visitou um antigo colega do curso primário. Pra não contrariá-lo, aceitou a canjica que lhe foi oferecida, entre reminiscências, afetos e sorrisos. Deus me livre de desfeitear um amigo de infância. A recusa daquele "manjar dos deuses" seria recebida, com toda a certeza, como uma desfeita imperdoável. Esse gesto poderia, até, motivar o rompimento de uma amizade antiquíssima, tamanha a gravidade da ofensa. Com a tigela cheia na mão, Tio Dedé sentiu quando seu estômago deu uma cambalhota. Reprimiu um vômito, mas aguentou firme. Afinal, já era a quinta casa que visitava, naquela tarde, e já era a quinta tigela de canjica que lhe era servida. "Não faça cerimônia, sô, que na panela tem mais..." E ele, sem graça e sem coragem de dizer que na sua barriga já não cabia mais nada, se limitou a dizer: "Tô esperando esfriar um pouco..." Quando os anfitriões saíram da cozinha, momentaneamente, pra pegar qualquer coisa na despensa, ao lado, ele aproveitou que estava sozinho, suspirou fundo, deu graças a Deus, correu até a janela e despejou, no quintal, a tigela de canjica. Voltou depressa, sentou no mesmo lugar e, quando os donos da casa voltaram, Tio Dedé estava com a cara mais cínica do mundo, fingindo que dava as últimas colheradas. Que sorte!

De repente, aquele silêncio. Pela porta da cozinha, que estava aberta, todos viram passar, lá fora, devagarinho, um porco enorme se sacudindo, com o lombo todo lambuzado de canjica. Tio Dedé não sabia onde enfiar a cara. Que azar!


Solimar Soares Escritor

Comentários